* Por Itamar Batista
Outubro é o mês em que o mundo volta os olhos para o espaço urbano onde a vida acontece. Pensando nisso, a ONU-Habitat, agência das Nações Unidas voltada ao desenvolvimento urbano sustentável, idealizou a campanha Outubro Urbano, que convida governos, organizações e a sociedade civil a refletirem sobre os desafios e as possibilidades de construir cidades mais inclusivas, resilientes e humanas. Nesta época do ano, a discussão sobre o futuro das cidades ganha destaque para lembrar que viver bem é mais do que ter um teto: é ter direito à cidade.
Em um país onde, conforme o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 87% da população mora em áreas urbanas, essa reflexão ganha contornos muito próprios. Aqui, falar de cidade é debater sobre desigualdade e pensar sobre acesso ao transporte, à moradia digna, ao saneamento, a espaços de convivência e ao lazer. É pensar, sobretudo, na parte da população que vive nas periferias das cidades e enfrenta, diariamente, os desafios impostos pela distância e pela falta de políticas públicas que cheguem até estes territórios.
O conceito de Direito à Cidade e a vida plena
A ideia de direito à cidade, formulada pelo filósofo Henri Lefebvre e amplamente trabalhada por pesquisadores, propõe que o urbano seja pensado como um bem comum. Mais do que um lugar físico, a cidade é um espaço de relações, oportunidades e pertencimento. Esse conceito esbarra, no entanto, na realidade concreta do Brasil urbano.
As cidades brasileiras seguem marcadas por fronteiras visíveis e invisíveis. Muros, avenidas movimentadas, condomínios fechados e periferias distantes fazem parte de um mapa de exclusões que se renova a cada década. O território urbano, valorizado de forma desigual, continua sendo o espelho de uma história que nega necessidades básicas a grande parte da população.
Como garantir o direito à cidade em meio às desigualdades históricas, às crises habitacional e climática e ao avanço da financeirização do espaço urbano? Para entender melhor esse cenário e como transformá-lo, como proposto no Outubro Urbano, conversamos com a Professora Doutora Ermínia Maricato, arquiteta, urbanista, pesquisadora e uma das maiores referências do país no debate sobre política urbana.
Com graduação, mestrado, doutorado e livre-docência pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), onde também foi professora titular e coordenadora da pós-graduação, Ermínia construiu uma trajetória marcada pela defesa do direito à cidade e pela atuação direta em políticas públicas. Foi secretária municipal de Habitação e Desenvolvimento Urbano de São Paulo e participou da criação do Ministério das Cidades, onde atuou como ministra adjunta e coordenou a proposta da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano.
Hoje, Ermínia integra a coordenação nacional do BrCidades, rede que articula pesquisadores, movimentos e gestores públicos em torno de um projeto urbano mais justo e inclusivo. Sua contribuição para o urbanismo e para a luta por moradia digna é amplamente reconhecida, com prêmios como o Arquiteto do Ano da Federação Nacional de Arquitetos, o Prêmio APCA na categoria Urbanismo e a Medalha de Ouro da Federação Panamericana de Associações de Arquitetos.
TETO: Quais são hoje os principais desafios que o Brasil precisa enfrentar para garantir o direito à cidade em meio às crises social, climática e habitacional?
Ermínia: Há uma compartimentação do conhecimento que impede de enxergar as conexões entre economia, sociedade e território. Para mais de 90% da população brasileira, viver em cidades significa enfrentar cotidianamente uma série de problemas estruturais. Cerca de 40% da população brasileira vive em regiões metropolitanas, mas boa parte não tem uma moradia formal aprovada pela prefeitura.
São pessoas vivendo em favelas e muitas outras em áreas de risco onde, em alguns casos, deslizamentos e enchentes são parte do cotidiano. O ponto central que explica a desigualdade urbana é a questão da terra. Quem tem acesso à terra urbanizada e regularizada? O preço do metro quadrado divide a sociedade por renda, cor, expectativa de vida e até índice de alfabetização. Esse nó da terra regula as relações sociais no Brasil desde o século XIX, quando a Lei de Terras consolidou a propriedade privada e manteve o poder concentrado nas mãos da elite herdeira do escravismo.
TETO: De que forma o acesso ao saneamento, à saúde, à educação, ao transporte e ao lazer fortalece o vínculo com o território e promove uma convivência urbana mais justa, garantindo o direito à cidade para todos?
Ermínia: Nos anos 70, trabalhei no Plano Diretor de São Bernardo do Campo e me aproximei das comunidades operárias e das Comunidades Eclesiais de Base. Foi nesse contato que percebi a força do pertencimento e da organização popular. As comunidades se reuniam nas igrejas, faziam cursos, formalizavam propostas e levavam para as prefeituras.
Essa mobilização deu origem a um “ciclo virtuoso” de prefeituras democráticas nos anos 1980 e 1990, com experiências em São Paulo e em Porto Alegre. Foi também nesse contexto que nasceram ideias como o orçamento participativo e a tarifa zero no transporte público. O pertencimento fazia parte de uma estratégia. Era muito forte e construído coletivamente.
TETO: Muitos bairros e comunidades seguem fora do mapa das políticas públicas e dos dados oficiais. Quais são os impactos dessa invisibilidade para essas populações e para o desenvolvimento das cidades?
Ermínia: Essa invisibilidade é a regra, não a exceção. A precariedade das periferias é tratada como algo excepcional pela mídia, pela academia e até pelas cortes de justiça, quando, na verdade, é o retrato da maioria. Sem visibilidade, não há solução possível para os problemas urbanos.
TETO: O planejamento urbano, em muitos casos, acaba reforçando desigualdades em vez de reduzi-las. O que seria necessário para inverter essa lógica e garantir a todos o direito à cidade?
Ermínia: O problema não está na legislação, mas na forma como ela é aplicada. Não é a Lei que segrega e exclui, mas a forma desigual como ela é praticada. Se o que é estabelecido pela fosse aplicado da forma como foi previsto, não haveria tamanha desigualdade.
TETO: Que papel as organizações e movimentos que atuam nas questões ligadas à moradia digna têm na aproximação entre comunidades e poder público?
Ermínia: Considero este trabalho essencial. É muito importante discutir os problemas concretos e fortalecer o vínculo comunitário. Eu costumo ir às periferias e percebo a relevância deste tipo de organização e movimentos de base que reúnem pessoas com realidades em comum. Isso me enche de esperança porque é uma forma real de mudar o mundo.
TETO: Como integrar o direito à cidade à pauta ambiental, de forma que a transição climática também seja social e territorialmente justa?
Ermínia: Justiça climática e direito à cidade são temas inseparáveis. Mesmo casas de alvenaria nas periferias podem ser insalubres. Vejo muitos quartos sem janela, úmidos, que favorecem doenças respiratórias. O alto índice de casos de tuberculose na Rocinha, no Rio de Janeiro, é um dado que evidencia como as desigualdades urbanas também impactam a saúde das pessoas.
De acordo com o Boletim Epidemiológico da Tuberculose, divulgado pela Prefeitura do Rio de Janeiro e pelo Centro de Inteligência Epidemiológica da Metrópole, a Rocinha, o Vidigal e o Pavão-Pavãozinho estão entre as áreas com maior número de casos da doença na capital fluminense.
O documento mostra que, em 2023, os bairros e comunidades com maior vulnerabilidade social concentram a mais alta incidência de tuberculose, incluindo também o Complexo de Gericinó, Acari, Maré, Alemão, Jacarezinho, Borel, Cidade de Deus e Rio das Pedras. Esses territórios, ressalta o boletim, se destacam pela extrema vulnerabilidade social, o que reforça a urgência de ações integradas e políticas públicas intersetoriais voltadas ao controle da tuberculose e à promoção de condições de moradia e de vida dignas.
Exemplos de políticas públicas que promoviam a participação popular são organizados
Conforme destacado pela professora Ermínia durante a entrevista, o chamado Ciclo Virtuoso das Prefeituras Democráticas e Populares foi um período fértil da política urbana brasileira, que ocorreu entre os anos de 1986 e 2000 e se tornou referência internacional em experiências de gestão pública participativa. A expressão nasce da tese de doutorado de Pedro Freire de Oliveira Rossi, orientada por Ermínia, e busca resgatar a memória de um tempo em que diversas administrações municipais buscaram reinventar o modo de fazer a cidade, apostando na democracia direta, no estabelecimento de prioridades com foco na população e no fortalecimento do poder local. Ermínia lembra que “essas prefeituras, muitas vezes sem apoio financeiro externo, mobilizaram recursos próprios e construíram políticas públicas a partir da escuta popular, abrindo espaço para uma cidadania que se fazia nas ruas, nas assembleias e nas decisões coletivas”.
Mais do que um recorte histórico, o Ciclo Virtuoso é um convite à reflexão sobre o que pode ser reconstruído hoje, em um momento de crescente desigualdade urbana. Revisitar essas práticas é também reconhecer que as cidades brasileiras já viveram uma era em que o poder público e a sociedade civil caminharam lado a lado, buscando um modelo de desenvolvimento urbano mais justo e inclusivo.
A conversa com Ermínia Maricato deixa evidente que o direito à cidade não é um conceito distante, mas sim uma uma realidade possível a partir do trabalho diário voltado à garantia dos direitos básicos para a população que mora nas periferias. Está nas decisões de quem governa, mas também na força das comunidades que resistem, que se organizam e que transformam seus territórios em espaços de vida.
O Mapa e o Direito à Cidade
Garantir o direito à cidade é promover acesso, pertencimento e voz. É entender que moradia, saneamento, transporte, saúde, educação e meio ambiente não são temas separados, mas partes de uma mesma luta por justiça social e dignidade para a população. O direito à moradia é inseparável do direito à cidade e deve ser pauta de discussões para além do Outubro Urbano.
Pensando nisso, a TETO Brasil criou o Mapa de Direitos, uma ferramenta que dá visibilidade à realidade das comunidades mais vulneráveis do país. O Mapa é uma plataforma de dados aberta que tem o objetivo de denunciar as violações de direitos nas favelas mais precárias do Brasil e, a partir disso, provocar transformação.
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Neste Circuito Urbano, o convite é para olhar de perto o que ainda está fora do mapa. Quer saber como a TETO Brasil atua? Acompanhe as atualizações nos perfis oficiais da organização!
*redator do blog da TETO Brasil

