*Por Itamar Batista
A moradia é um direito social previsto na Constituição Federal desde a Emenda Constitucional nº 26, de 2000, e reafirmado pelo Estatuto da Cidade e pelo Estatuto da Igualdade Racial. Ambos reforçam o dever do Estado em garantir condições adequadas de habitação para toda a população, especialmente para a população negra, historicamente excluída dos espaços urbanos. É por isso que, no Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro em memória de Zumbi dos Palmares e da resistência do povo negro, refletir sobre moradia digna é também reconhecer como desigualdades criadas no período escravista ainda estruturam o acesso à cidade no Brasil.
O Censo de 2022 revelou que 16,4 milhões de pessoas vivem em favelas e comunidades urbanas. Nesses territórios, a maioria se reconhece como parda (56,8%) ou preta (16,1%). Esses dados mostram que a exclusão urbana no Brasil tem cor e reflete marcas profundas do racismo estrutural. Para a TETO a moradia digna é um pilar essencial para a construção de um país mais justo e representa uma forma concreta de reparação histórica em um país que carrega uma herança escravista que perpassa gerações.
É neste contexto que histórias como a de Sthefani Domênica Pedroso, a Dodô, ganham forma e força. Nascida em Guararema e moradora do bairro do Tremembé, na zona norte de São Paulo (SP), Dodô é mulher negra e periférica. Ela conta que tornou-se voluntária da TETO por incentivo da mãe.
“Minha mãe me disse que muitas das nossas conquistas foram possibilitadas por conta de diversas políticas públicas, doações e trabalho de voluntários. Então, assim que pude, iniciei no voluntariado”, lembra. Em 2019, conheceu a TETO e viveu no Encontro Nacional de Voluntariado (ENV) experiências marcantes ao ouvir moradoras relatarem como pequenas intervenções, como a construção de uma escada em uma área de morro, transformou o cotidiano de uma comunidade de Belo Horizonte (MG) e fortaleceu o senso de espaço coletivo.
Desde então, Dodô participou de várias atividades junto à TETO. O voluntariado é, para ela, um espaço de aprendizado profundo sobre desigualdades raciais, urbanas e territoriais. Essa compreensão se tornou ainda mais concreta quando, em uma atividade na comunidade Luiz Rubino, em São Paulo, ouviu sua mãe dizer que havia crescido em um território parecido com aquele. Para Dodô, esse momento revelou como a história da moradia atravessa gerações de famílias negras no Brasil.
Maria Gabriela Braga, a Gabi, voluntária da TETO que mora em Salvador (BA), também traz uma perspectiva importante sobre o que significa ser uma jovem mulher negra dentro do voluntariado. Ela conta que, diante de uma realidade dura, marcada pela luta diária pela sobrevivência, muitos jovens negros não conseguem ter tempo ou condições para se dedicar a ações sociais.
Por isso, ao ocupar esse espaço , Gabi compreende que sua atuação, como uma pessoa negra, é um privilégio e também uma forma de representatividade. “Reconheço que, infelizmente, a maior parte dos jovens negros precisam se dedicar à sobrevivência, o que consome todo seu tempo, e lhes faltam oportunidades de estudar, de se profissionalizar e de se envolver em causas sociais”, acrescenta.
Moradia e a realidade da população negra no Brasil
Conforme apurado em um estudo conduzido pela Fundação João Pinheiro (FJP), em 2023 o Brasil registrou um déficit habitacional de quase 6 milhões de domicílios. Em 2019, em dados também divulgados pela FJP, 68,7% da população considerada para o déficit habitacional era composta por pessoas negras e pardas.
A renda agrava ainda mais o quadro. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), pessoas negras representam 80% dos 10% mais pobres do país, o que limita o acesso a aluguéis acessíveis, financiamentos e melhorias nas próprias casas. A luta por moradia digna é, portanto, inseparável da luta contra a desigualdade racial.
Dodô destaca que, após a abolição, o primeiro direito negado às pessoas negras foi o acesso à terra. “Essa barreira estrutural ajuda a explicar por que mulheres negras precisam de até cinco gerações para conquistar uma casa própria”, acrescenta. A publicitária ainda acrescenta que até mesmo programas como o Minha Casa, Minha Vida não incorporam recorte racial porque a exigência de um emprego formal para garantir o financiamento afasta muitas famílias negras do programa.
Crises climáticas e sanitárias intensificam ainda mais essas vulnerabilidades promovidas pela falta de moradia digna e acesso aos equipamentos do Estado. Calor excessivo, tempestades, alagamentos e deslizamentos de terra impactam especialmente territórios ocupados majoritariamente por pessoas negras, que vivem com menos infraestrutura e menor proteção social.
Para Dodô, é preciso analisar a história do Brasil para compreender os motivos que fazem com que tantos territórios ocupados por pessoas negras necessitem de ações sociais de moradia emergencial “As pessoas não estão nesses lugares porque querem. Alguém organizou a sociedade para que fosse assim, e isso ainda opera hoje. Lutar por moradia é lutar contra o racismo, a favor da justiça ambiental, por redistribuição de renda, por saúde, por educação e por trabalho digno”, ressalta.
No Dia da Consciência Negra, moradia é luta
Gabi reforça que a relação entre moradia e a população negra é inseparável. A história da urbanização no Brasil, marcada por exclusões profundas, fez com que pessoas negras ocupassem majoritariamente territórios onde políticas públicas raramente chegam. Para ela, “[o livro] Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, traduz essa realidade com precisão dolorosa, especialmente por seguir atual para tantas famílias”.
Assim como a TETO, Gabi defende e sonha com o dia em que ninguém precise morar em uma casa de chão de terra batida. “Um lar é onde uma pessoa possa dormir sem medo das chuvas, do calor extremo ou do risco de perder tudo da noite para o dia”. Ela acrescenta que moradia digna é “um espaço onde crianças possam crescer com dignidade e onde seja possível sonhar com tranquilidade”.
Neste Dia da Consciência Negra, unir a luta antirracista e o sonho da moradia digna significa reconhecer que a cidade se torna mais justa quando os territórios deixam de ser vistos como locais de ausência e passam a ser compreendidos como espaços de direitos. Significa também valorizar o protagonismo negro tanto nos territórios quanto no voluntariado, onde trajetórias como a de Dodô e Gabi revelam a força transformadora de pessoas negras que constroem, lideram, atuam em causas urgentes e cuidam de outras pessoas.
Seja parte da transformação
A luta por moradia digna é uma causa urgente que exige empatia, mobilização e ação! O voluntariado na TETO se fortalece porque pessoas diferentes se unem para construir, aprender e agir ao lado das comunidades que enfrentam diariamente os impactos da falta de infraestrutura e do racismo estrutural. A presença de pessoas negras nesse espaço é fundamental para ampliar vozes, fortalecer a representatividade e garantir que a pauta da moradia seja enfrentada com profundidade e justiça.
Independentemente da sua trajetória, da sua profissão ou do tempo que você tem disponível, você pode contribuir. Participar das construções, apoiar campanhas, doar, divulgar o trabalho ou oferecer habilidades específicas são formas concretas de atuar na causa da moradia, que é urgente e atravessa a vida de milhões de famílias brasileiras.
Junte-se à TETO! Cada ação conta e aproxima o Brasil de um futuro onde todas as pessoas possam viver com dignidade, igualdade e segurança.
*Redator do blog da TETO Brasil


