Por Tamires Lietti
Alguns dizem que foram 40 casas derrubadas, outros dizem 47 e alguns ainda fazem as contas incluindo as casas que foram prejudicadas, mas não carbonizadas por completo. Ao andar pelo Jardim Itatiaia, em Campinas, são muitas as versões sobre o incêndio que atingiu a comunidade na madrugada do dia 31 de julho. O horário falado é unânime: por volta das 02h da madrugada, quando grande parte dos moradores precisaram abandonar suas casas para fugir do fogo, que se alastrava em velocidade relâmpago, segundo Terezinha dos Reis, a líder comunitária do local. “Muitos não tiveram tempo de salvar nada, saíram com os filhos e com a roupa do corpo”.
Gilson Aparecido, quase vizinho de Terezinha, confirma a versão violenta da líder a respeito do ocorrido. O jardineiro de 36 anos, viveu 8 deles no Itatiaia. Chegou para fugir de um aluguel que não podia bancar e foi ali que sua vida deu uma “guinada”, segundo ele. Hoje, sustenta os 3 filhos com um negócio próprio de jardinagem. Ele confirma que a cena foi feia. “O fogo estava mais alto que as casas, peguei minha moto e fui ao centro acionar os bombeiros. Quando voltei, vi minha filha de 13 anos tentando carregar o máximo de coisas pra fora da casa”, narrou com detalhes. Empreendedor de muita fé, Gilson disse que no momento em que viu o desespero da filha, a acalmou com simplicidade. “Deixa, minha filha, o que for da vontade de Deus, vai acontecer”. Depois do susto, o morador afirma que sentiu o bem em meio ao caos. Na visão dele, o fogaréu veio para unir as pessoas da comunidade. “Depois de uma tragédias dessas, não tem como não se sensibilizar. Eu nunca quis sair daqui, gosto de morar aqui, só quero ter certeza que vou ficar para dar o próximo passo”, complementa ao contar os planos de construir uma casa de tijolos, menos suscetível a acidentes.
Roseli Albuquerque, braço direito da líder Terezinha, vive com um dos seis netos em uma das poucas casas que não foi atingida pelo fogo. Quando questionada a respeito da idade de cada filho, que vivem em outros cantos da comunidade e tiveram suas casas destruídas, ela diz não lembrar. “São muitos, não sou boa com datas. Eu mesma acho que tenho 47 anos, mas não tenho certeza”, brinca. Apesar de não ter perdido seu teto para o fogo, confessa que seu maior sonho é uma casa de tijolo para chamar de sua. “Meu filho desenha tatuagens e fez meu projeto. Sonho muito com a minha cozinha, com os meus armários. Vai ficar tudo muito lindo”, conta em tom de empolgação.
Rose acompanhou a luta de Terezinha como líder desde o início. Elas se conhecessem desde que moravam no terreno antigo, próximo ao atual Itatiaia, de onde saíram muitas das famílias que atualmente vivem na comunidade que pegou fogo. No início da formação da comunidade, eram 29 famílias ocupantes, que foram tiradas do primeiro espaço por um casal, dono do local. Todas essas 29 foram realocadas oficialmente no terreno atual, também de propriedade dos dois, com a aprovação deles. Segundo a moradora, até hoje eles prometem oficializar o uso daquelas terras por parte das famílias na comunidade, mas nunca aconteceu.
Rose sente muito orgulho do trabalho da amiga líder. Um dia após o incêndio, as duas alegam ter recebido a visita do casal que parecia querer se aproveitar do momento de fragilidade de todos para tirar a comunidade de lá, é o que especula Terezinha, que enfrentou tanto o casal quanto a polícia dizendo que “ninguém arredaria pé de lá”. “Tá vendo só? É por isso que Deus não a levou”, comentou enquanto Tere contava a história de resistência do pós-incêndio. Só depois o comentário foi explicado: Terezinha já teve dois tipos diferentes de câncer, um deles no fígado. Atualmente, vive com uma bolsa atrelada a barriga, de onde recebe medicamentos. Mesmo com suas limitações, tem força de sobra para coordenar e estimular a comunidade a continuar unida e fortalecida.
Daiana Cristina, por incrível que pareça, também não sabe ao certo quantos anos tem. “Tenho 30 e tralalala”, responde quando questionada. Diferentemente dos outros moradores, ela não estava em casa quando o incêndio aconteceu, com planos de reforma para o seu cantinho, ela estava passando uns dias fora da comunidade enquanto a reforma acontecia. “O pai da minha filha me ligou para perguntar onde eu estava, ele ficou sabendo do incêndio antes de mim. Quando me disse que estava pegando fogo, insisti em acreditar que ele estava brincando”. Daiana chora ao lembrar da cena que viu ao chegar no local: a casinha e a reforma foram completamente destruídas, mas a fé da moça é inabalável, “não reclamo, não. Agradeço a Deus por estar viva”.
Apesar de muitos discordarem a respeito da quantidade de casas que foram queimadas, todos concordam que “há males que vêm para o bem”, como colocou Maria Aparecida, uma moradora de 49 anos que teve os planos de uma festa de aniversário impedidos por conta do incêndio. “Minha vizinha me acordou e quando vi, o fogo já estava subindo muito forte. Foi só o tempo de pegar minhas filhas. Ninguém teve tempo de fazer nada, se eu não tivesse acordado, teria sido uma tragédia pior”. Na visão prática de Cida, o fogo só foi violento por conta da madeira que sustenta todas as casas na região. Em tempos secos, o fogo se alastra ainda mais depressa: “as pessoas não têm condições de construir com tijolos, se tivessem, fariam”, conta. Apesar das dificuldades com suas moradias, Cida acredita que o recomeço virá mais forte. “”Todo mundo está muito unido. Força nós temos e vontade também, ajuda temos e muito, vamos levantar tudo de novo”.
COMO FAZER ACONTECER?
A construção emergencial no Jardim Itatiaia é uma construção que todos torcem para que nunca precise acontecer. Camila Darwiche, voluntária de 25 anos e atual Diretora de Construções do TETO de São Paulo, conta que todas as construções habituais são planejadas no ano anterior. O calendário planejado com um ano de antecedência, obviamente não inclui as construções emergenciais. Normalmente, a logística dos eventos massivos é feita cerca de 4 meses antes da data final, com uma série de validações. Dessa vez, no entanto, as coisas funcionaram de forma diferente e em tempo recorde, segundo Camila.
A Diretora conta que foi a primeira vez que o TETO atuou de forma tão emergencial. “O incêndio do Itatiaia tirou todo mundo da zona de conforto. Acordamos na segunda-feira (31) com a notícia e viemos pra Campinas no dia seguinte. Foi vendo o que aconteceu por lá que entendemos a urgência de fazer a construção acontecer”, conta. O primeiro passo era simples: lidar com os fornecedores. “Liguei para eles e perguntei em quanto tempo eles podiam fornecer o suficiente para cerca de 30 casas. Me disseram 2 meses e eu expliquei que precisava que fosse bem antes”.
Com a garantia de que os materiais seriam de fato produzidos, era hora de pensar no financeiro. O valor? Além do dinheiro advindo das construções corporativas, cerca de R$ 100 mil precisavam ser levantados em menos de 30 dias. “Optamos por uma plataforma de crowdfunding online porque o poder de mobilização dos voluntários já estava muito alto. Todos estavam doando desde o início. Foi tudo um grande trabalho em conjunto, do escritório com os voluntários”
De formas diretas e indiretas, o dinheiro foi arrecadado. A meta foi batida no dia limite para que isso acontecesse, graças a rifas de itens como camisas autografadas e tatuagem, “pizzadas” e venda de doces. “Se eu pudesse resumir essa construção em uma palavra seria ‘resiliência’, principalmente por parte da comunidade. A mobilização dos moradores nos deu forças, muito mais do que nós demos para eles.” E na visão de Camila, isso tem um porquê, ela acredita que quanto mais os moradores vivem em condições de seus direitos básicos violados, mais capacidade e vontade eles têm de vencer obstáculos. “Apesar da tristeza, o que vi aqui foi muita força. Se eles não vão sair daqui, nós também não vamos. Estamos apenas começando”.
CONSCIENTIZAÇÃO
A imersão de quem participou da construção emergencial durante o primeiro final de semana de setembro foi intensa. Até mesmo fora da comunidade, todas as atividades promovidas para os voluntários abordavam a conscientização a respeito do tema central da ação: os incêndios nas favelas do Brasil e a problemática do déficit habitacional no país. No sábado (02), os voluntários receberam a visita de três jornalistas recém-formados, que produziram um documentário sobre incêndios em favelas, já exibido publicamente em algumas mostras no Brasil. Em um grande roda de conversa e discussão, os produtores explicaram sobre o estudo que fizeram e a descoberta de uma certa lógica por trás dessas grandes tragédias. “Existe sempre um interesse por trás e alguém ganhando por isso. Favelas bem localizadas mexem com interesse de mercado e o fogo pode ser sim uma forma de despejo”, afirma Conrado, um dos integrantes do trio, formando em Jornalismo pela PUC.
Durante a atividade os voluntários aprenderam e discutiram muito a respeito da especulação imobiliária e da correlação deste mercado com os incêndios. É de conhecimento geral que cerca de ¼ da população paulistana vive em favelas, ganhando salários que não garantem o ingresso destas pessoas no mercado imobiliário. Sendo assim, a invasão de terras se torna a solução para essas famílias, que muitas vezes ocupam lugares bem localizados na periferia e são impedidas de construir casas em melhores condições pela incerteza de posse do terreno em uso. “Além disso, a condição insalubre também potencializa alguns casos. O lixo acumulado gera gases e isso facilita, os fios em péssima manutenção, também. É uma junção de coisas que deixam as famílias suscetíveis aos incêndios”, explica Conrado.
Mais especificamente no caso do Jardim Itatiaia, também estudado pelos meninos autores do documentário, o cenário é outro. O Prefeito da cidade, Jonas Donizette tem projeto de aumentar o perímetro urbano em cerca de 1/3, o que chegaria no limite onde a comunidade se encontra. Na visão de Conrado, há uma possível relação entre os fatos. “Uma comunidade pobre desvaloriza seu entorno, o preço de venda cai quando há favelas, tornando-as um incômodo pro mercado imobiliário. Não dá pra afirmar que o incêndio é criminoso mas existe toda uma logística para que aquela comunidade não fique por lá.”
SENTIMENTO ÚNICO
Foram dois dias intensos de trabalho debaixo de sol escaldante. Com direito a levas de bolinho de chuva patrocinado pela líder Tere, cerca de 250 voluntários dedicaram quase 12 horas do sábado e do domingo para colocarem a mão na massa e devolverem aos moradores do Itatiaia o que o fogo levou. A voluntária de 20 anos, Giovanna Devietro, já foi líder em outras 7 construções mas afirma que dessa vez foi um sentimento inusitado. “É diferente ser líder nessa situação. Já visitei o Itatiaia antes e estive lá de novo, em uma situação onde algo foi tirado deles. É sempre assim, pessoas nas condições deles são privadas de muitas coisas, nossa intenção é melhorar isso”. Ela também confirma o sentimento de união propagado pelos moradores e acredita que isso fez a diferença no sucesso da ação, “”vim aqui na pré-logística e senti uma energia muito pesada, nunca vi tanta fuligem no chão. Este final de semana vi gente que nunca tinha se falado se ajudando, o incêndio propagou uma coisa muito boa entre eles””.
A visão de Luigi, voluntário de 18 anos recém-chegado, é semelhante, a construção no Itatiaia foi apenas a segunda experiência do jovem, intensa o suficiente para que ele já percebesse a diferença. “O algo a mais está totalmente no sentimental. Vi tecidos queimados na parede do terreno onde estou construindo, foi muito triste e tocante. Por mais que minha outra construção tenha sido muito emocionante, essa é mil vezes mais””.
O sentimento de união de todos os moradores do Jardim Itatiaia não passou despercebido para ninguém. Ana Carolina Azevedo, de 20 anos, diz estar em casa na comunidade, a estudante de Arquitetura participou do TDI 2016 e do TDI 2017 lá e afirma que, dessa vez, a união entre eles transcendeu. “Mesmo conhecendo todos por lá, não tinha noção da força que eles tinham, na necessidade todos se juntam. Cada vez que o TETO vem eles pegam um pouco de nós pra eles e enxergam o que somos capazes de fazer juntos”.