Por: Renata Cardarelli
Fotos: Tamires Lietti
Avenida Souza Ramos, 28 A. Este é o endereço de correspondência da Cristina, do Michel, da Bel e das 302 famílias que moram na comunidade de Souza Ramos, na zona leste de São Paulo. Sem pavimentação, nomes de ruas ou numeração nas casas, os Correios, a água encanada e a rede elétrica não chegam à comunidade. Essa realidade, porém, está mudando e vai melhorar em breve.
Com a atuação dos voluntários do TETO, as ruas foram batizadas e ganharam placas, e as casas, números. Facilitar a localização não é o único benefício que a sinalização traz. O próximo passo é conseguir a regularização da energia elétrica e da água encanada, junto à Eletropaulo e à Sabesp, respectivamente. “Um dos nossos primeiros projetos era o asfalto, mas decidimos correr atrás da regularização da água primeiro”, conta Letícia Brandão, voluntária do TETO e coordenadora da ONG em Souza Ramos.
Depois disso, o objetivo é pavimentar as ruas. O asfalto deve chegar posteriormente, justamente para facilitar o trabalho de instalação dos tubos, no subsolo, para os técnicos da companhia de água e saneamento. Por enquanto, há os chamados “gatos” de água e luz, enquanto o esgoto tem duas destinações: parte vai para a tubulação que passa pela Avenida Souza Ramos e o restante vai para o córrego em cujas margens há algumas moradias.
Letícia não mora na comunidade, mas já é da família. Com brilho nos olhos, ela caminha por entre as ruas de barro, conhece as crianças, cumprimenta os idosos sentados diante das casas e é parada por pessoas que têm dúvidas sobre, por exemplo, os horários da reunião da Associação. Há dois anos, Letícia está presente, religiosamente, todos os domingos na comunidade.
Para muita gente, domingo é dia de descanso, mas para quem faz parte da Associação de Moradores de Souza Ramos domingo é dia de avaliar as conquistas e planejar os próximos passos, em prol de toda a sociedade local. A reunião acontecia sempre no bar do Seu Gonçalves, presidente da Associação e estudante de direito. Acontecia, porque no último dia 4, passou a ter rua e número próprios. A sede agora é uma casa roxa, feita com muito esmero, e vai receber as próximas reuniões do grupo.
Pontualmente às 15h, Letícia começa: “esta é uma atividade para construirmos os nossos sonhos, para estabelecer metas futuras”. Aos poucos, as pessoas chegam para participar do encontro e discutir sobre assuntos como bazar, festas e temas que devem ser tratados com o subprefeito da região. “As reuniões de moradores acontecem com seis pessoas. Não é frustrante trabalhar com pouca gente, porque é exatamente quem vai fazer, quem está afim de ir atrás, quem precisamos que esteja presente e que dê opinião. Quando queremos mobilização, divulgamos e mais pessoas aparecem”.
Em busca do tão sonhado “uso campeão”
Uma das mobilizações mais recentes foi a respeito do ganho de posse do terreno. A ação correu na Justiça por dez anos. O receio era de que houvesse um processo de reintegração de posse e as pessoas fossem retiradas do espaço.
“A audiência, em primeira instância, foi em agosto do ano passado. Eu e a comunidade fomos de ônibus até o Fórum, então, tinha cerca de 40 pessoas na porta do Fórum. Ganhamos e foi super legal, até soltaram fogos na comunidade”, lembra Letícia.
Além dos moradores, o espaço era reivindicado por outras duas partes privadas. Transitada em julgado, a decisão foi favorável aos moradores de Souza Ramos, que se reuniram com um dos voluntários da equipe jurídica do TETO, para entender todas as etapas do processo. “A estratégia foi: vamos explicar o que aconteceu, para as pessoas se apropriarem disso. Nosso voluntário jurídico quis estudar o processo inteiro, contar tudo como foi e, finalmente, falar: ‘agora acabou, nós ganhamos’”.
A comunidade trabalha na luta por outra meta: conseguir o título da propriedade, o usucapião, ou como muitos brincam, o “uso campeão”. “Nós estamos em vista do usucapião, que é de extrema importância para nós. A propriedade é de suma importância até para prevenir um despejo por parte do poder público em querer se beneficiar da área”, explica o presidente da Associação de Moradores, chamado por todos de Seu Gonçalves.
Conhecida como Constituição Cidadã, a Constituição Federal, promulgada em 1988 garante direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros, em seu artigo 5º, um deles o direito à propriedade (inciso XXII). A Constituição, contudo, prevê que a propriedade deve atender a funções sociais, ou seja, priorizar a coletividade para depois atender o particular. Assim, em caso de desapropriação, o proprietário tem o direito à indenização justa, prévia e em dinheiro. É pensando justamente na Legislação brasileira que seu Gonçalves, estudante de direito, exemplifica: “Imaginemos que o poder público vá fazer a duplicação de uma avenida e tenha que tirar uma rua inteira de casas. Se a pessoa só tiver a posse, o município pode indenizar ou não. E tendo a propriedade, a indenização é obrigatória, porque o governo está se apossando de uma coisa da qual você é o proprietário”.
O sonho da propriedade faz parte da vida de João Alves de Oliveira há 15 anos. Zito, como é chamado por todos, é um dos fundadores da comunidade de Souza Ramos. “Eu morava com minha família em Ferraz de Vasconcelos, pagava seis alugueis. Um amigo falou que teria uma ocupação e eu vim. Cheguei aqui e não tinha ninguém, depois, rapidinho, estava cheio de gente. Trabalhamos bastante o terreno, antes era um brejo, tinha até égua e vaca mortas”, lembra. Aos 60 anos, o baiano de Itabuna (67% da comunidade é de São Paulo e 12%, da Bahia) garante que a situação melhorou bastante ao longo dos anos.
Muita gente atribui as mudanças e as melhorias à atuação do TETO. Acolhedora, Bel abre as portas de sua casa para receber os voluntários da ONG e falar sobre os pontos em desenvolvimento e aspectos a melhorarem. “O TETO é nossos pés e nossas mãos. Primeiro Deus e depois vocês”, diz. Bel não gosta do próprio nome, Maria Albertina da Silva, “eu corto relação com quem me chama pelo nome”, brinca.
Bel é uma vencedora, há sete anos lutou contra um câncer de mama. Hoje, livre da doença, tem como meta emagrecer 20kg, conforme indicação médica, já que seus órgãos estão tomados de gordura. “Eu aprendi a viver. Ninguém me ama mais do que Deus”. E amor e bondade são aspectos que Bel deseja transmitir para os vizinhos. Ela gosta, por exemplo, de distribuir lanchinhos para criança, que participam nas manhãs de domingo do programa do TETO voltado à educação infantil.
Camila já não é mais criança. Adolescente, 15 anos, cresceu na comunidade, aproximou-se das ações do TETO e acabou incentivando a mãe, Cristina Bernardo de Andrade, de 38 anos, a também tomar parte. “A comunidade não é unida, mas por meio do TETO se uniu mais”, afirma Cristina. Ao som de músicas transmitidas por uma rádio popular sintonizada no rádio de casa, Camila lamenta que ainda são poucos jovens que se interessam para participar com ações e sugestões, em prol da coletividade. Dados levantados pela equipe do TETO, em abril deste ano, com 106 famílias, mostram que 57% da comunidade de Souza Ramos têm entre 0 e 15 anos. Camila inclusive é exceção, segundo a mãe, já que a maior parte das garotas de sua faixa etária “já está com bucho”. O sonho da jovem que cursa o primeiro ano do Ensino Médio, contudo, é continuar estudando e se tornar veterinária.
Há apenas quatro anos morando na comunidade, Michel já é uma das lideranças e uma pessoa bastante ativa, na luta pelo bem comum. “Minha tia mora aqui [Souza Ramos] há dez anos e ela ofereceu para comprarmos a casa dela. Neste mês, faz 4 anos que comprei a casa. Houve mudanças nesse período. Da comunidade, percebo mais motivação do pessoal da associação. Do TETO, o divisor de águas é que pensamos em uma coisa e eles trazem outras ideias, que muitas vezes analisamos e falamos ‘Nossa, é verdade’. A gente ficava imaginando como abrir a associação, por exemplo. É prefeitura? É cartório? E eles tinham toda essa informação para passar. Até então, a gente não sabia nem dar o primeiro passo”.
Seguindo em frente
A caminhada é longa, ainda há muito a se fazer, mas muito já foi conquistado. A união, o interesse e o desejo de participação da comunidade são fundamentais para se conseguir mais vitórias.
“Nosso objetivo do ano era conseguir uma sede para a associação. Então criamos um plano de arrecadação de fundos. Fizemos bolo para vender, suco, bingo e tivemos a ideia de bazar. Fizemos um bazar e foi um sucesso: no primeiro, arrecadamos R$ 800. Antes, a gente fazia ação e arrecadava R$ 100. Então, passamos a fazer bazar todo mês, no segundo domingo do mês”, conta Letícia, voluntária do TETO e coordenadora da comunidade.
As roupas do bazar são doações de amigos e moradores. O quarto do Seu Gonçalves serve como abrigo e fica entulhado com tantas arrecadações. Cada peça é vendida a R$ 1 e a comunidade sai ganhando em dobro, já que beneficia os indivíduos que compram as roupas e a coletividade, com o dinheiro arrecadado. Após o bazar que angariou R$ 800, os demais foram mais fracos, mas a média de arrecadação é de R$ 300.
“Vamos investir no aluguel da Associação agora. É o primeiro dinheiro que será usado”, diz Letícia. Por dois anos de aluguel, o valor será de R$ 3000, “um achado”, segundo ela. No primeiro ano serão gastos R$ 2000 os mil restantes serão pagos no segundo ano de uso do espaço.
Entre os sonhos a serem alcançados está também a construção da sede da comunidade. O pessoal de Souza Ramos vai se candidatar ao FunTETO, fundo concursável para os projetos elaborados pelas comunidades atendidas pelo TETO. Os voluntários da ONG acompanham a elaboração de projetos, o financiamento e a execução. O TETO entra com 60% das despesas e a comunidade levanta os outros 40% – podendo contar com a ajuda de parceiros.
A caminhada ainda é longa, mas com a mobilização de todos os objetivos podem ser alcançados. “A participação das pessoas era praticamente zero, depois das conquistas agora são cerca de 20% dos moradores participando, direta ou indiretamente”, ressalta Seu Gonçalves. Para melhorar ainda mais, ele deixa a dica: “O que falta para melhorar é a comunidade acordar, as pessoas têm que se sentirem importantes dentro da comunidade, para que haja união”. A união física do endereço em breve deixará de existir, já que a caixinha de correspondência da Avenida Souza Ramos, 28 A, não terá mais serventia. Que a união se faça presente, então, em laços de cumplicidade na luta por uma comunidade melhor.