A segunda cidade mais rica do estado do Rio de Janeiro, terceira em população e município onde a Petrobras possui sua maior refinaria do mundo, Duque de Caxias está longe de ser uma cidade pobre. Caracterizada por uma forte disparidade social, Caxias (como é popularmente conhecida) é uma cidade que possui seu IDHM1 (2013, ONU) em 0,711, índice de desenvolvimento considerado alto. Além disso, com mais de 10.000 lojas instaladas e um amplo parque industrial, a cidade deveria ser considerada, realmente, como de primeiro mundo. Entretanto, foi em Caxias que conhecemos uma das comunidades mais precárias e miseráveis que havíamos visto em nossos cinco anos de trabalho com favelas, o Jardim Gramacho, famoso por abrigar o maior aterro controlado da América Latina.
Um bairro sediado em um lixão que posteriormente foi transformado em aterro controlado e teve seu fechamento em junho de 2012 em função das pressões nacionais² e internacionais reunidas na Rio+20, transformando o local, hoje, em ruínas. Com o fechamento, a região, que até a data contemplava mais de 5.000 catadores ativos trabalhando em suas “rampas”, oriundos de diversos municípios da região da baixada fluminense, perdeu mais de 60% de sua população, ficando no local apenas as pessoas que realmente não tinham para onde ir. O lixo passou então a ser levado ao Centro de Tratamento de Resíduos de Seropédica.
A proposta de fechamento não veio, claro, em última hora. O aviso de fechamento foi apresentado oficialmente em fevereiro de 2011; porém, muitos dos catadores não acreditaram que o anunciado iria se cumprir, como Ângelo, morador do Jardim Gramacho desde criança e catador desde os 12 anos. Ele conta que as notícias de fechamento eram sempre constantes, havia muita ameaça de que tudo sairia de lá, mas ninguém acreditava, porque dia após dia continuavam chegando caminhões de lixo e despejando resíduos no local.
A política de fechamento do aterro incluía não apenas a saída dos catadores da região e a incisão de medidas de mitigação de impacto do lixo sobre a região de mangue (o aterro fica na Baía de Guanabara, em região de proteção ambiental), porém vislumbrava um amplo programa de capacitação de ofícios aos moradores e aplicação de indenizações e bolsas de seguro-desemprego mediante a realização de um cadastro de todos os moradores que eram catadores.
Porém, as políticas de inclusão não se concluíram e as associações de moradores, antes com um forte caráter desenvolvimentista, passaram a perder força conforme a motriz do local – os catadores – passou a sair da região.
O TETO – organização latino americana que trabalha com desenvolvimento comunitário em assentamentos precários – chega à região em Maio de 2013, encontrando o local em ruínas e, talvez, mais precário do que já esteve antes. Ezequiel, representante do Fórum Comunitário do Jardim Gramacho, entidade que reúne as associações da região, coloca que o bairro já foi muito bonito e desenvolvido, com bastante comércio e uma vida bastante ativa todos os dias, sendo esse cenário atual resultado do fechamento do aterro controlado, retirando toda a dinâmica do bairro que girava em torno da catação de lixo e resíduos.
Era difícil acreditar que o local poderia estar tão precário, uma vez que houve uma grande presença de mídia na região, alcançada através de alguns documentários filmados no local (o Lixo Extraordinário, de Vik Muniz foi indicado ao Oscar de 2011, e o Estamira é considerado um dos documentários que retrata com maior profundidade a vida de catadores em lixões). Seria difícil acreditar também que não houvera mobilização de atores e agentes externos ou internos visando a melhora de qualidade de vida dessas populações. Não fizeram, não houve ação. Hoje há famílias que mal conseguem comer e falta água em grande parte das residências, além de diversos outros problemas de ordem social que assolam o bairro.
Após iniciarmos os trabalhos no local, pudemos enxergar melhor a situação. Entrevistamos mais de 204 famílias através de enquete de vulnerabilidade familiar, que analisa o tripé “renda familiar, vulnerabilidade social e caracterização física da moradia”. Os números³ são alarmantes e mostram uma realidade extremamente difícil para pais e mães que sofrem para cuidar dos seus filhos.
O nível de escolaridade na região mostra por que muitas famílias não conseguiram empregos formais após terem perdido o lixo para Seropédica. Apenas 2,4% dos chefes do lar, maiores de 25 anos, completaram o ensino médio enquanto na cidade do Rio de Janeiro esse número sobe para 53,7%. E essa situação tende a persistir na geração atual dos jovens do Jardim Gramacho: 40% das pessoas em idade escolar (5-24 anos) continuam sem frequentar alguma instituição educativa. Se olharmos para a economia dessas famílias veremos que com os programas sociais e o trabalho duro elas conseguem sobreviver com um mínimo mensal. A renda per capita dessas 204 famílias (580 pessoas) é de R$ 233,70 incluindo benefícios do Bolsa Família e outros programas. Sem os benefícios o pib per capita cai para R$ 205,00 enquanto na cidade do Rio de Janeiro é de R$ 1787,70.
As condições de habitabilidade são extremamente precárias, sendo que 91,6% das famílias vivem em domicílios com predominância de madeira retalhada em seus revestimentos, o que caracteriza alta instabilidade da estrutura da casa, pondo em risco seus habitantes. Somado à baixa qualidade construtiva (77,5% das famílias diz que chove pelo telhado ou que tem goteiras em seu teto), podemos inferir que a população está significantemente vulnerável à incidência de doenças broncorrespiratórias (em especial as crianças mais novas] ), ainda mais quando se avalia que 78% dos seus pisos são úmidos e 63% deles são de terra. Além disso, 28% das famílias afirmam que sofrem com alagamentos constantes, reforçando uma característica do local, que teve seu córrego assoreado pela ação expansiva das habitações no período “áureo” do aterro e pela localização em uma região de várzea e no nível do mar.
Os números assustam e nos incomodam, mas nada nos deixa mais indignados do que conviver com essas famílias, estabelecer uma relação e saber que a qualidade de vida delas não depende apenas da nossa vontade de trazer melhorias. Depende da vontade política e econômica de diferentes atores da sociedade para que a vida desses ex-catadores, atuais pedreiros, novas donas de casa e os mais de 42% de desempregados retomem suas vidas e um pouco de dignidade.
O TETO junto com o Fórum Comunitário do Jardim Gramacho tem buscado essa melhoria. Tem trazido a mídia, voluntários e outros agentes para assumirem essa responsabilidade. Não é o suficiente e sabemos disso. Precisamos que toda sociedade reconheça que o fim da extrema pobreza deve ser uma prioridade e acreditar que é possível supera-la. Em ano de Copa do Mundo que tal a gente parar de driblar essa questão?
Ariel Macena e Fernando Haddad – Implementadores do TETO no Rio de Janeiro.
Baixe o relatório de enquetes Jardim Gramacho completo.
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1 – IDHm – Índice de Desenvolvimento Humano Municipal.
2 – O Plano Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS – Lei no 12.305/2010) veio corroborar a necessidade já anunciada há anos, e estabelece a proibição de lixões a céu aberto a partir de 2014, obrigando todos os municípios a separarem os resíduos para realizar um descarte ambientalmente correto. Assim, em junho de 2012, resultado de compromissos políticos e ambientais assumidos para a preparação da Conferência das Nações Unidas (Rio+20), o aterro de Gramacho foi oficialmente fechado, deslocando todos os despejos de resíduos para o novo aterro sanitário de Seropédica que contempla as exigências ambientais e não conta com a presença de catadores no seu interior.
3 – O relatório de enquetes do qual foram idealizados estes dados e números foi realizado baseado em 202 entrevistas feitasno setor mais precário do Jardim Gramacho, o da Rua Tocantins, de julho a setembro de 2013.