A pandemia da COVID-19 é um momento ímpar para toda sociedade. Nos momentos mais duros de seus efeitos, as moradias, o acesso à água, o acesso à alimentação e a solidariedade se mostraram nossas maiores e mais eficientes defesas. Não à toa, toda experiência bem sucedida de combate ao vírus se fundou na ampla comunicação e ação em defesa do isolamento social e da correta higienização das mãos e dos lares, além de reivindicar um papel forte do Poder Público na implementação de soluções econômicas e de saúde pública que atendam todas as pessoas.
Nesse sentido, a moradia se posiciona como fator transversal e indispensável para que os cidadãos e cidadãs do país tenham a garantia do direito de se proteger – não sendo exagero nenhum dizer que ter onde morar com dignidade e cidadania é, mais do que nunca, uma questão de vida ou morte. No entanto, na contramão do cuidado com a vida da população, sobretudo a parcela mais vulnerável, há um movimento muito contraditório dos gestores públicos e do poder judiciário em todo o território nacional, que acelerou processos de remoções, espoliando a vida de milhares de famílias nas favelas. Esse movimento é também internacional com casos na Índia ,1 Kenya , e nos EUA . Por aqui, surpreende também o fato desse aumento coincidir 2 3 com o expressivo avanço dos casos de infecção e morte pela COVID-19 nas regiões periféricas mais afetadas pelas remoções.
A urgência da questão ganhou espaço nas mais amplas discussões sobre os direitos humanos neste período. Em março de 2020, quando a pandemia penetrou com mais intensidade na América Latina, a ONU Habitat e a UN Human Rights 4 5 divulgaram recomendações muito relevantes para todos os agentes envolvidos na gestão dos territórios urbanos. Em ambas as cartas, as organizações se posicionam contra “desalojos forzosos” e “forced evictions”, que são os respectivos termos em
1 Reuters. Millions in India face eviction amid coronavirus recovery push, August 18th, 2020. Disponível em: https://tinyurl.com/y5p4qo6m
2 Reuters. Forced evictions leave 5,000 Kenyan slum dwellers at risk of coronavirus, May 6th 2020. Disponível em: https://tinyurl.com/yxqng5nj
3 Aspen Institute. The COVID-19 Eviction Crisis: an Estimated 30-40 Million People in America Are at Risk, August 7th, 2020. Disponível em: https://tinyurl.com/yyj93qac
4 ONU Habitat. Mensaje clave – COVID y asentamientos informales. Marzo, 2020. Disponível em: https://tinyurl.com/y3kouxw3
5 FARHA, Leilani. COVID 19 – Guidance Note: Protecting Residents of Informal Settlements: UN Special Rapporteur on the right to adequate housing. United Nations Human Rights. March, 2020. Disponível em: https://tinyurl.com/y47nmkfl
espanhol e inglês para os processos de remoções forçadas que se intensificam no Brasil e na América Latina. Matéria recente do The Washington Post aborda a
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questão com base na ordem de despejo dada à Ocupação Viva Jardim Julieta (que fica na Zona Norte da cidade de São Paulo) e a partir da difícil experiência de uma de suas moradoras, Jussara de Jesus. Além disso, apoiada pela urbanista Raquel Rolnik (FAU-USP) e pelo urbanista Francisco Comaru (UFABC), a matéria grifou o fato de que no Estado de São Paulo mais de 2.000 famílias foram removidas forçosamente de suas casas desde março e mais de 1.000 estão sob o mesmo risco.
A TECHO, organização internacional à qual a TETO Brasil é associada, trabalha com determinação nas favelas mais precárias do continente latino-americano e também se posiciona contra as remoções de famílias em tempos de pandemia. Para além do contexto atual, toda a Organização se coloca em conformidade com os valores Constitucionais (Art. 1º/III e Art. 5º/XXIII), isto é, contra quaisquer remoções que façam uso da violência e que não incluam a participação popular e a correta articulação do Poder Público, garantindo a ordem, o cuidado, o respeito e a ciência antecipada de toda a comunidade, além da oferta de opções compatíveis com a realidades dos que vivem ali, como programas habitacionais, aluguel-social em quantia adequada ao contexto imobiliário do município e/ou a garantia do pagamento (ou adiantamento) das parcelas do Auxílio Emergencial.
Reforçamos a agenda contra o acirramento dos conflitos fundiários no momento atual, em linha com os mais recentes debates e articulações sobre o tema, com destaque para o movimento Despejo Zero, do qual a TETO faz parte e que engaja entidades e a sociedade civil contra os processos de remoção no país . As 7 articulações de diferentes frentes sociais também levaram a problemática até a Relatoria Especial para o Direito à Moradia Adequada da ONU, que se posicionou frente ao tema no dia 9 de julho de 2020 .8
O direito de permanecer das famílias é a medida básica que garante segurança e preservação da vida em meio à crise desencadeada pelo novo coronavírus. Nos somamos às entidades que já se articulam e se posicionam sobre o tema, colocando os seguintes pontos:
6 The Washington Post, julho de 2020. Disponível em: https://tinyurl.com/y3qx6vdy
7 LabCidade. Remoções aumentam durante a pandemia #DespejoZero. Julho, 2020. Disponível em: https://tinyurl.com/y2qv2xyz
8 RAJAGOPAL, Balakrishnan. Brazil must end evictions during COVID-19 crisis: UN Special Rapporteur on adequate housing. UN Human Rights, July 2020. Disponível em: https://tinyurl.com/y5t4jfqe
- Participação popular. No processo de reintegração de posse é fundamental garantir a participação ativa dos moradores e moradoras das comunidades, a fim de equacionar, a partir da opinião popular, os efeitos sociais da tomada de decisões jurídicas. Precisamos ir além e cultivar de forma comunitária o interesse na compreensão da complexidade humana das remoções, que afetam diretamente a segurança e a autoestima das famílias; provoca danos na formação de crianças e adolescentes, a partir do momento que interrompe e prejudica anos escolares; e agride o meio ambiente, na medida em que resulta em grandes quantidades de entulho e resíduos.
- Mediação de conflitos e paridade. É necessário que o Poder Público tenha um papel neutro e mediador do conflito fundiário, de forma a não se inclinar a interesses que não o Público. Outrossim, anterior a qualquer medida presencial de remoção, faz-se importante a articulação entre a Defensoria Pública, a Defesa Civil, núcleos de mediação, grupos de observação independente e outros órgãos de assistência social e tutelar, a fim de assegurar uma defesa justa e preventiva para todas as famílias presentes na comunidade. Conflitos fundiários não podem ser tratados como uma questão bélica e anti-Constitucional.
- Prevalência do interesse Público e dos direitos humanos. A quem interessa remover famílias pobres em meio a uma crise sanitária? Essa é a pergunta crítica que todos e todas nos devemos fazer. Como já citamos, a moradia representa uma questão de vida ou morte – e nunca podemos esquecer que é um direito humano. Morar com dignidade é um direito humano. Equacionado a isso, segundo dados da TETO Brasil, 27% dos moradores e moradoras de favelas são crianças de 0 a 9 anos e 5,5% possuem 60 anos ou mais; dois grupos profundamente afetados pela sucessão dos fatos, seja pela questão de uma maior taxa de risco de morte, seja pelos prejuízos na formação e educação. Então, se não interessa ao conjunto da sociedade que pessoas tenham seus direitos violados, interessa a quem?
- Direito de permanecer, sem medo. Morar em uma favela ou ocupação já representa uma violação de direitos, pois são territórios que expressam os limites da desigualdade e da pobreza. O direito de permanecer, em tempos de pandemia, representa mais do que permanecer nas suas casas e em seus te rritórios: significa permanecer vivo. É função do Poder Público e todos os agentes que compõem a sociedade, defender que o direito à vida seja uma
bandeira solidária, que nos fortaleça enquanto Brasil e América Latina. Precisamos urgentemente direcionar toda a infraestrutura da sociedade brasileira para que as redes de saúde, os programas econômicos, culturais e educacionais cheguem com efetividade e compromisso nas periferias. Com essas condições será possível oferecer oportunidades reais para que as pessoas desenvolvam suas capacidades e possam acessar condições mais dignas.
Nossa história é marcada pelo trabalho em conjunto com as favelas mais precárias do continente. Os valores da TETO Brasil se cruzam com as iniciativas que citamos e tantas outras que vislumbram uma sociedade justa e sem pobreza. E é por acreditar nisso que estamos trabalhando com mais determinação do que nunca para que este momento global seja uma janela de mudança solidária para toda sociedade .9
Remover medo e injustiça.
Permanecer solidariedade, direitos e ação.
A TETO Brasil é uma das organizações assinantes da campanha #DespejoZero.