Por: Tamires Lietti
Muitos aviões passaram em cima da casinha de madeira enquanto a história corria solta. Fia, moradora de 35 anos da comunidade Portelinha, localizada próxima ao aeroporto de Guarulhos, precisou de uma tarde toda para narrar, com detalhes, a jornada que a levara até ali, onde o barulho da turbina é alto e impressiona. Cheguei a imaginar se dava para medir apenas em metros qual era a distância entre o teto que nos cobria e as tantas aeronaves que insistiam em interromper a narrativa da mulher guerreira.
A vida em comunidade de Rosângela, nome de nascença de Fia, começou no bairro de Vila Barros, na Grande São Paulo. O apelido é usado desde a primeira vez que viveu, de propósito, como forma de preservar sua integridade. O apelido gera curiosidade e ela o explica com simplicidade. “O nome Fia vem da forma como minha mãe me chamava: fiinha”.
Como moradora da Vila Barros, Fia viveu por muito tempo com o ex-marido e o filho mais velho, Fabrício, que completou 18 anos recentemente. Sua mãe, muito presente ao longo da criação do primogênito, faleceu na virada do ano de 2006 para 2007, data que tornara seu luto ainda mais ingrato. Na mesma época, o ex-esposo vendera o barraco onde moravam sem a intenção de dividir o dinheiro da venda. Pegou o valor, construiu uma nova família e deixou a antiga de lado, como se ninguém carregasse um pouco de seu sangue. O período culminou para uma depressão que fez com que Fia que, naquele período tinha apenas 25 anos, um filho e nenhum lugar para morar, chegasse a 26kg na balança. “Fiquei só o coro e o osso.”
Apesar da morte repentina, a mãe de Fia viveu o suficiente para acompanhar os primeiros meses de vida dos netos gêmeos, que vieram na segunda gravidez da mulher, logo depois de Fabrício. A gestação é um caso curioso e uma história que Fia conta com muito entusiasmo. Quatro ultrassons foram feitos e, em todos eles, os médicos afirmavam ser um bebê só, um menino, que Fia decidiu que se chamaria Flávio. “Cheguei a pesar 92kg na gravidez. Minha mãe sempre falava que era impossível que ali só tinha um bebê. Eu rebatia dizendo que, se tivesse dois, daria um para ela” conta em tom brincalhão, arrancando risadas da filha Flaviane, a gêmea que ficou escondida no ventre da mãe por nove meses.
A gestação dos gêmeos foi uma aventura do começo ao fim. Das especulações pelo tamanho da barriga ao momento do parto, que quase aconteceu na rua, Fia relata detalhes de tudo com um tom de humor e muitos gestos. Lembra de ter sido ajudada por um porteiro quando sua bolsa estourou, enquanto ela estava indo a pé para o hospital e conta que só lá, alguns minutos antes do parto, ficou sabendo que sua gravidez era de risco e dupla. “Quando o médico me falou que tinha tido uma menina, eu briguei com ele dizendo que não era possível. Ele me pediu pra continuar fazendo o que estava fazendo e aí então vi também o menino que estava esperando.”
O choque foi grande já que a família, até então de duas pessoas, havia dobrado. Eram dois outros bebês para cuidar. Fia enfrentou um quadro de depressão pós-parto e recebeu, neste período, muitas doações de vizinhos que as ajudavam com fraldas. “Deus supriu o presente que ele me deu.” Ainda assim, não perde a luz nos olhos ao contar das aventuras que viveu com o gêmeos e lembra, perfeitamente, o peso e a altura de cada um deles ao nascer. Até hoje brinca que, os dias em que o estresse é muito, é o dia dela de “Flávio” e o dia em que ela está mais amorosa e paciente é o dia dela de “Flaviane”. Toda vez que fala de cada um dos cinco filhos, transparece um amor sem fronteiras por cada uma das crias, ainda que ela mesma confesse que uns dão muito mais trabalho que outros. “Se não for assim, não é família, né?”
Após o falecimento da mãe, Fia foi morar com a irmã, com quem ficou por quase oito meses junto com os três filhos. Sob o teto e as regras dela, precisou trabalhar dobrado dentro da casa para pagar o favor. “Ali minha vida se tornou um inferno”, confessa. “Tinha dia que eu não conseguia comer porque o pouco que ela me dava não era suficiente para mim e para os meus filhos, então eu escolhia dar o que conseguia para eles”.
Mãezona, Fia sempre fez tudo acompanhada pelos filhos e tudo por eles. Em uma das andanças pelas Zona Sul de São Paulo, onde morava a irmã, foi atropelada com um dos gêmeos, que tinha apenas 6 anos quando o acidente aconteceu. Sessenta e três pontos na bacia do pequeno e um joelho quebrado na mãe que, internada e com dificuldades para andar, precisou recorrer a uma outra irmã para que o período de recuperação pudesse ser respeitado. Balela, segundo ela. “Na casa da minha outra irmã a história se repetiu. Ela vivia dizendo que não era obrigada a nos sustentar”.
Em período pós-acidente e impedida de fazer muitos esforços físicos, Fia não conseguia pagar pelo pouco sustento que tinha na casa da irmã que, dois meses após o atropelamento, decidiu por conta própria que uma casa de prostituição seria a solução dos problemas de todos. Em uma casinha escondida no Bresser, Fia chegou sem nada. “Me vestiram com um top, uma saia minúscula, um salto enorme e uma maquiagem muito feia. Não sabia o que ia fazer. Só pedia perdão pra Deus”.
Lá na casinha, Fia ficou conhecida como “a India”. Em seu primeiro dia por lá, o joelho mal recuperado fez com que ela desmaiasse de dor e não conseguisse cumprir nenhuma “tarefa”. Nas próximas 24 horas no local, ficou sabendo que “a India” havia sido solicitada por alguém. “Quando saí, pronta para o serviço, vi a cara do meu ex-marido. Ele me resgatou. Nunca mais voltei para lá”, explica acrescentando que foi a irmã que mencionou onde ela estava, em um visita que o pai fez para as crianças que estavam na casa da tia. “Minha saída só não gerou confusão porque eu ainda não tinha sido rentável para a casa”.
Quando voltou para a cidade na região metropolitana, Fia recebeu um bom abrigo pela primeira vez em sua longa jornada. Abrigo de verdade, sem cobranças. Uma moça que, no passado, havia tratado de seu caso de dengue, ficou sabendo do seu desamparo com os filhos e ofereceu a casa da mãe, uma senhora dona de um coração que sempre cabia mais um “Ela me tratou como se fosse filha e tratou meus filhos como se fossem netos. Até hoje eu a chamo de mãe”. Nessa mesma época, como já havia reencontrado o ex-marido, conseguiu deixar acordado que ele daria R$300 de pensão. Com essa garantia, alugou uma casinha e conseguiu levantar mais dinheiro trabalhando como faxineira e como monitora em um parquinho. “Meus filhos participavam de brincadeiras e passeios. Nessa época, nossa vida era boazinha.”
Foi no dia 15 de novembro de 2008, que caiu nos ouvidos da moça que algumas terras na região de Guarulhos haviam sido ocupadas. “Não pensei duas vezes, larguei tudo e fui.”
No mesmo ano em que se mudou para a comunidade, Fia reencontrou um ex-namorado de adolescência. Parecia destino: a irmã trabalhava na oficina de costura da mãe do moço, conhecido como Deli. Ficaram juntos por 6 meses, antes que Deli fosse preso por roubo. Com outros processos em seu nome, foi condenado a cumprir pena de 2 anos, período em que Fia continuou indo visitá-lo na prisão, todos os finais de semana. “Eu sabia que ele queria muito ser pai. Parei de tomar injeção sem que ele soubesse. Engravidei dentro do presídio”. A mais novinha da família, Ana Clara, é a única que foge à regra: o nome não começa com F. “É que ela é filha de outro pai”, explica. Ainda que Deli tivesse ficado, orgulhosamente, com uma foto do ultrassom da menina na cela e tivesse recebido visitas da pequena com poucos meses de vida, a situação ficou insustentável. “Era muito constrangedor leva-la. Um dia disse que não voltaria mais.”
Ana, que hoje tem 5 anos, estava com pouco mais de um ano de idade quando o pai saiu da prisão. Ela não tem recordações do pai biológico e chama o ex-marido de Fia de pai até hoje. “Ela pede a benção pra ele”. Deli nunca mais apareceu. Segundo Fia, ainda está envolvido no mundo do crime. “Não quero justiça, qualquer dinheiro que venha dele é um dinheiro maldito. Não preciso de nada disso.”
Conhecida por suas coxinhas e kibes caseiros e pela boa vida social na Portelinha, a vida de Fia por lá, depois de tantas mudanças, foi tomando forma. Em 2014, um rapaz foi assassinado em uma esquina próxima a sua casa, recém-montada. Um crime violento, segundo o povo. “Me disseram que o estado do corpo era absurdo, não consegui ver”, conta. Depois desse episódio, Fia acabou desenvolvendo um quadro grave de síndrome do pânico, que a impediu de sair de casa por quase oito meses. Os filhos passaram a estudar de manhã, para que o risco fosse menor. “Imaginava que se fizeram aquilo com o rapaz, podia acontecer com qualquer um, inclusive com a gente. Eu acordava assustada, não tomava banho sozinha, sempre achava que alguma coisa ia acontecer comigo. Só me escondia”.
Com a mãe em casa o tempo todo e com medo de deixar os filhos soltos, Flávio, o menino gêmeo que, nessa época, acabara de completar 16 anos, fugia de casa pra participar das atividades comunitárias todo final de semana. Era o começo do TETO na Portelinha. Fia conta que o adolescente chorava muito quando o todos iam embora. De tanto falar, acabou convencendo a mãe a conhecer “o pessoal”. “Um dia ele trouxe a equipe fixa antiga pra cá pra almoçar. Passei a cozinhar pra equipe sempre.”
Neste mesmo ano, a equipe do TETO estava para escolher os moradores que iriam ser contemplados na construção e Fia foi escolhida. Sua história de vida virou vídeo que foi disseminado em grandes empresas parceiras da ação como a Telefônica, por exemplo. Ela chegou a receber em casa diretores da empresa que decidiram visitá-la para conhecer pessoalmente “a mulher do vídeo”. “Eles queriam me conhecer de perto porque ficaram emocionados com a minha história. Tenho até hoje o desenho que foi feito para a minha casa naquela semana.” Ela também lembra que, durante a construção, se negou a receber as comidas que eram de direito de cada equipe. “Fiz questão de cozinhar para todos eles.”
Com o sucesso da construção, a relação entre Fia e o TETO estava consolidada. No mesmo ano, ela foi capacitada como superintendente da ONG e, mais tarde, foi nomeada como presidente da comunidade. Sobre a nomeação, ela fala com ressalvas. Ela afirma que sempre preferiu ser “apenas voluntária”, mas que aceitou o cargo por conta da popularidade que tinha na Portelinha.
Para o futuro, Fia se imagina morando em outro lugar. Sonha com um terreno em Itaquera e, mãe de São Paulinos, brinca que ficar perto da casa do Corinthians é a única coisa que não seria boa por lá. Quando fala da possível mudança, percebe-se o coração de mãe brando que carrega: só pensa na melhoria de vida para os filhos. Abaixa o tom de voz ao falar de Flávio que, mesmo jovem, já se envolveu no tráfico e anima-se ao falar de Flaviane, gêmea dele, que tanto colabora com a mãe para organizar e família. Emocionada, ela afirma que, desde que o TETO chegou na Portelinha, as crises de pânico sumiram e que a chegada da ONG veio quando ela não tinha mais esperanças.