*Por Aline Khouri
Quantas camadas de precariedade podem atingir uma favela? A experiência da TETO Brasil e pesquisas recentes demonstram que são muitas. Em muitos casos, vemos simultaneamente um acúmulo excessivo e multifatorial de riscos, que associam às condições desfavoráveis de ocupação – áreas suscetíveis a riscos hidrológicos, geológicos, doenças tropicais, dentre outros -, problemas sociais como baixos níveis educacionais, baixa renda e problemas de saúde, a ausência de articulações sólidas com frentes de luta por moradia e movimentos sociais organizado, conflitos fundiários, desafios técnicos para execução de intervenções perenes ou transitórias; o exílio urbanístico e à alta exposição às mudanças climáticas, dentre inúmeras camadas, criando um cenário difícil de caracterizar e mensurar.
No geral, estamos falando de contextos de alta exposição a riscos ambientais e uma limitação extrema nas capacidades de resistência e adaptação do territórios e das pessoas moradoras. Essa conjunção de problemáticas produz uma condição de vulnerabilidade tão grande que Ygor Santos Melo, pesquisador da USP e também Gerente Social da TETO Brasil, recorreu ao termo hipervulnerabilidade em sua pesquisa de mestrado para alertar sobre essa condição.
O prefixo “hiper-“, originário do grego “huper”, significa “acima”, “além” ou “excessivo” e é utilizado em diferentes áreas do conhecimento, como Medicina e Direito, para descrever realidades que se destacam pela intensidade acentuada. Por isso, a expressão “hipervulnerabilidade” engloba situações em que a sobrecarga de precariedades é tão extrema que ultrapassa os níveis usuais de vulnerabilidade, criando contextos onde a exposição a riscos é exacerbada e as capacidades de resistência e adaptação são extremamente limitadas.
“Como pesquisador-observador-interventor de um conjunto de mais de 70 favelas e comunidades no país, fui percebendo que há um aglutinamento excessivo e diferencial que torna a situação de alguns territórios ainda mais complexa do que a de outros. Isto é, a pobreza dentro da pobreza. Precisamos entender essas camadas no detalhe, para entender porque seguimos falhando em resolver o problema e talvez encontrar novos caminhos de mudança”, explica Ygor, Mestrando em Habitat na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP).
Em seu estudo, Ygor caracteriza as camadas de precariedade que se sobrepõem sobre os territórios e as organiza nas dimensões de exposição, resistência e adaptação, com o objetivo de compreender a profundidade da pobreza e vulnerabilidade sócio-urbana nas favelas. A exposição está relacionada à localização e às características dos ambientes em que as pessoas sobrevivem, como assentamentos precários em áreas de risco.
A resistência refere-se à capacidade econômica, social e de infraestrutura que determinados territórios e grupos têm para suportar impactos e imprevistos. Já a adaptação é a capacidade de superação e adequação a eventos e adversidades futuras, semelhantes ou não a outros acontecimentos passados, e também uma melhoria na resposta a esses incidentes.
Por exemplo, intensas chuvas em São Paulo tendem a afetar de maneira diferente Paraisópolis e Favela City, mesmo que ambas estejam na Zona Sul e sejam muito mais vulneráveis do que bairros de classe média e classe alta.
Em favelas como a City, onde há mais precariedade habitacional, menor qualidade ou inexistência de infraestruturas e menor capacidade de organização interna, além de conflitos jurídicos, desafios técnicos e problemas urbanísticos específicos, o impacto relativo tende a ser maior, pois é uma comunidade ainda mais exposta, menos resistente e menos resiliente. A pesquisa não pretende criar um índice ou quantificar o número de camadas que existem de maneira a restringi-las, mas se aproximar de detalhes que, muitas vezes, são invisíveis.
Ygor liderou o estudo “Panorama das Favelas e comunidades invisibilizadas do Estado de São Paulo”, lançado recentemente pela TETO Brasil em parceria com o Insper e a Diagonal, que expõe uma perspectiva sobre territórios invisibilizados e hipervulnerabilizados. Foram analisados nove territórios: Verdinhas, Fazendinha, Porto de Areia, Bemfica-Machado, Pedra Branca, Boca do Sapo (Favela dos Sonhos), Comunidade da Paz, Capadócia e Tekoa Pyau.
Nesses locais, 43% das moradias eram feitas de madeira ou sucata, 20% dos pisos eram de terra ou madeira e 69% das famílias sofriam com calor ou frio excessivo, roedores ou insetos, infiltração de água e umidade. Além disso, somente 30% dos moradores das comunidades acessavam sistemas formais de água, saneamento e eletricidade.
Soluções tradicionais de habitação são insuficientes em contextos de hipervulnerabilidade
Segundo Ygor, falar sobre a necessidade de construir novas moradias não é suficiente para solucionar os problemas de habitação em contextos de hipervulnerabilidade. É preciso colocar em prática soluções concretas e viáveis, que devem considerar a complexidade dos ambientes e das relações sociais nesses territórios. Para ele, o futuro da moradia e do habitat deve considerar soluções com as seguintes características:
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- Imediatas e Transitórias: quem precisa de moradia, necessita dela imediatamente. A urgência observada em contextos de extrema pobreza e vulnerabilidade requer soluções transitórias que servem como ponte para propostas definitivas. Gerações de pessoas morrem esperando uma solução “ideal” que historicamente nunca chegou.
- Adaptáveis e Participativas: as comunidades devem ser o centro das propostas habitacionais, pois possuem realidades e demandas específicas. Não basta escutá-las pontualmente, mas estabelecer uma comunicação contínua com o objetivo de assegurar que as soluções sejam participativas no desenho, execução, uso e planejamento futuro dos territórios. Ao desenvolver módulos habitacionais transitórios e modulares, é essencial avaliar as particularidades locais, como o risco iminente de remoção. Soluções transitórias bem planejadas possibilitam, por exemplo, a desmontagem rápida e o reaproveitamento de até 90% da estrutura para construir novas unidades em outras localidades, promovendo uma melhor gestão de recursos. Isto é, podem ser construídas em contextos de alta instabilidade jurídica.
- Resilientes ao Clima: em um contexto de mudanças climáticas, as moradias devem utilizar materiais sustentáveis e técnicas construtivas eficientes, considerando conforto, durabilidade e resistência a fenômenos como chuvas intensas e inundações, para garantir que essas famílias possam viver com dignidade e segurança enquanto permanecerem em seus territórios – e na maioria das vezes, elas querem permanecer.
Como você percebeu, existem diferentes contextos de favelas no Brasil. A TETO atua nas comunidades mais precarizadas e precisa da colaboração de muitas pessoas para continuar esse trabalho. Junte-se a nós e faça sua doação!
*editora do blog da TETO Brasil