Por Cris Lima, voluntária do TETO
“Eu venho lutando pela vida e pela moradia digna, acabei no meio de tanta revolta sendo um revolucionário”. Essa foi uma das primeiras frases ditas por José Carlos de Assis, 56, reciclador. Ele, esposa e filhos construíram durante um final de semana, junto com o TETO, a nova casa da família na comunidade Esperança Vermelha. Entrevistar moradores que teriam casas construídas pela TETO era algo novo, e como tudo que é novidade está pretenso a erros, o cuidado teria que ser em dobro.
Já na manhã de sábado, antes das construções começarem e logo após nosso café-da-manhã, uma voluntária me aborda, aponta pro Seu Zé Carlos e diz “Esse vai ser o teu entrevistado mais difícil, questionador demais, acabou de perguntar por que eu tô aqui, nessa construção, o que me move e eu tô faz tanto tempo aqui que não soube responder”. Lembrei disso, pensei sobre e o fiz ser um dos últimos que entrevistaria, pois, tive a impressão de que receberia um não logo de pronto e quis me preparar um pouco mais.
Sim, questionador é a palavra exata que define José Carlos e é por isso que o escolhi para ser o primeiro sobre o qual escrevo. Suas reflexões críticas me lembraram os motivos que me fizeram optar por jornalismo para minha formação. Não foi à toa que em vários momentos tive vontade de chamá-lo de Professor ou Mestre e bater palmas cada vez que ele me fazia aprender um pouco mais. “Me diga, menina, pra que essa entrevista? Por que você tá fazendo isso? Isso vai parar aonde?” me pergunta Seu Zé Carlos, olhando em meus olhos, não de um jeito intimidador, mas como alguém curioso, que precisa entender o porquê das coisas para ser motivado. Era um teste, e eu não podia desviar o olhar ou não ter certeza do que dizer. Por sorte ele pareceu gostar da resposta, sorriu e topou conversar.
Nesse final de semana da construção, os entrevistados se dividiram em duas categorias: que queriam ser ouvidos ou preferiam não dar entrevistas. Seu Zé Carlos deixou claro que sabia da importância de ter voz e de se fazer ouvido, o teste foi somente para ter certeza de que o ouvinte valeria a pena, porque tinha muito a contar. Sentamos em um banquinho, nos apresentamos, e logo moradores e vizinhos chegaram para conversar com ele. “Agora não, vou dar minha entrevista”, é o que responde de pronto para dispersar o público.
Seu Zé Carlos, além de questionador, é um senhor educado e doce, bem diferente do que minha imaginação distorcida havia criado. Estudou até a quinta série, teve que parar os estudos ainda criança para ajudar na renda da família. Foi criado somente pela mãe. Tem 11 filhos, 5 já adultos do primeiro casamento, já passou por vários empregos e hoje, como reciclador, não possui carteira assinada e ganha mais ou menos 1 salário mínimo por mês. Casado pela segunda vez, vive com sua esposa e 6 filhos. Desde que saiu da casa da mãe para se casar sempre morou em barraco de lona, logo dormir e acordar se preocupando se vai ou não chover virou uma realidade. “É aterrorizante. É um horror porque você tem suas crianças ali do seu lado, quando o vento vem e arranca tudo as crianças entram em estado de choque, a gente fica triste ao extremo, desgostoso, tem que ter muita força vinda de Deus pra poder superar essa situação”.
“A moradia é a base, daí como que eu vou ter uma moradia se eu não tenho um bom posto de saúde, um bom transporte, eu não tenho uma boa educação então tudo isso tá em conjunto com a habitação, com a moradia”.
Atento a tudo, participou ativamente da construção de sua nova e primeira casa. Botou a mão na massa em todo o processo da construção, conheceu todos os voluntários e quis acompanhar tudo. Foi difícil fazê-lo parar por um momento para conversarmos, sempre tinha alguém o solicitando. “Moradia é a base”, me diz assim que começamos, e logo depois emenda com a consciência de que o conceito de cidade para todos e moradia digna passa por muito mais, “a moradia é a base, daí como que eu vou ter uma moradia se eu não tenho um bom posto de saúde, um bom transporte, eu não tenho uma boa educação então tudo isso tá em conjunto com a habitação, com a moradia”.
Nascido e criado em território paulistano, Seu Zé Carlos enxerga São Paulo como um lugar cheio de oportunidades, mas subjugado por interesses políticos. Ele cita áreas de lazer como um exemplo e diz que é algo existente apenas em lugares mais nobres da cidade, “num lugar deles proporcionar um divertimento melhor, eles oprimem os nossos jovens”. Sua reflexão sobre o que é morar na maior cidade do país também passa pela discriminação que sofre ao buscar vagas de emprego, pois sempre se considerou em grande desvantagem, “eu considero que o negro é uma pessoa que fosse fazer uma corrida e começasse 60 metros atrás, quem está 60 metros na frente vai ganhar a corrida então é assim que nós se encontra se você for avaliar a história”.
Toda essa consciência político-social de Seu Zé Carlos veio também de seus 23 anos de luta em movimentos sociais, advinda do desejo de ter uma casa própria e da falta de oportunidades para tal sonho. Em grupo ele viu uma chance de se fazer ouvido e lutar pelo que é de fato um direito dele e de todo cidadão. Não foi um caminho fácil, vivemos em um país que criminaliza fortemente os movimentos sociais e, em mais, de duas décadas de luta, Seu Zé Carlos já viu e passou por muita coisa. “Já tomamos bomba de efeito moral, de gás lacrimogênio, já desmaiei…A gente se sente um guerreiro sendo combatido, porque tá lutando por direitos, pela moradia diante de uma política corrupta. É humilhante”, afirma.
Mas o tom de voz, ao falar das violências que já sofreu do Estado, não é de tristeza, cansaço ou derrota. Seu Zé Carlos não baixa a cabeça, tem orgulho da própria luta e uma enorme sede de justiça, “se tiver de morrer lutando a gente vai fazer isso”. E foi essa garra de ir atrás do que é de direito que o levou com os moradores da comunidade Esperança Vermelha a conseguirem uma casa emergencial dao TETO. Mas eles querem e podem muito mais e, atualmente, estão no processo de luta por um apartamento do Programa Minha Casa Minha Vida. Seu Zé Carlos me explicou como funciona toda a burocracia do Programa, como eles estão aptos a participar e demonstrou toda paciência para me explicar os números e cálculos feitos, e como estão fazendo para tornar isso uma realidade. É importante ser articulado, saber de seus direitos e ir atrás deles, me ensina Seu Zé Carlos.
Por fim, quando falamos sobre sonhos, Seu Zé Carlos responde que a casa emergencial da TETO já é uma parte de seus vários sonhos se realizando. Explica que agora terá mais tempo para procurar um emprego melhor porque quando chover não vai se preocupar se a casa vai ou não cair e me diz que a proteção contra a chuva já está fazendo com que seus filhos estejam muito felizes.
Mas e se a casa da TETO é só uma parte, quais são os outros? “Eu quero ver meus filhos criados, ter uma casa mobiliada, uma casa digna, apartamento com playground, um carro na garagem, que é o mínimo, e um salário digno todo mês com um emprego. A sensação que às vezes a gente sente é que a gente tá pedindo demais e não, não é”, responde.