Precisamos questionar as narrativas de poder que constroem a cidade para os homens…
Quando se discute as favelas, é necessário discutir trabalho. A urbanização relaciona-se com a maneira por meio da qual as riquezas se distribuem e se produzem e, no Brasil da industrialização a baixos salários, a necessidade de recorrer à ocupação de terras e à autoconstrução das moradias ilustra o quanto o empregador de quem mora nas comunidades precárias não precisou inserir na remuneração o valor necessário à provisão da habitação.
Pensar em trabalho é também fundamental quando se debate gênero numa sociedade forjada na narrativa do homem branco enquanto dominante e detentor dos meios de trabalho produtivo, do domínio sobre à terra, dos meios de produção e, consequentemente, da lógica a partir da qual é estruturada a cidade. A detenção desses meios – e, como consequência, das narrativas que decorrem desse domínio – faz com que se usurpe o papel das mulheres e se invisibilize o trabalho produtivo das pessoas negras – homens e mulheres – na construção da sociedade brasileira desde o período escravocrata, o que necessariamente envolve a contribuição na construção das cidades.
Como as favelas se formam através de relações de trabalho – e de exploração – desiguais, observa-se um contexto no qual ao fato de ser mulher significa ter sua mão de obra multiplamente explorada. Nesse contexto, direitos são transformados em mercadorias acessíveis a quem pode pagar por elas, invisibilizando sujeitas políticas que contribuem para a construção do espaço complexo que denominamos cidade.
Assim, não se pode pensar na vida na cidade sem pensar que ser mulher nesse espaço difere de ser homem no mesmo ambiente. Há incompletude também em se pensar que a vivência feminina na cidade é a mesma no centro e na periferia, da mesma maneira em que é preciso considerar que ser mulher negra na favela evidencia mais uma faceta de vulnerabilização de direitos – em especial quando depara com a solidão da mulher negra, objetificação e hipersexualização de seus corpos e menores salários. Além disso, destaque-se que as vivências urbanas de uma mulher que não se encaixa em uma identidade cisgênero e sexualidade heteronormativa também são desempenhadas de maneira particular, sendo própria também o cotidiano na cidade na mulher com deficiência.
Ser mulher não é, dessa forma, uma categoria homogênea. No esforço de pensar numa definição em comum, há a possibilidade de pensar na mulher como ocupante de um “não-lugar”: o fato de não ser o homem branco cisgênero, de não ser o sujeito para o qual foi construída a sociedade urbana como a entendemos hoje, pensada e decidida através de uma lógica hegemônica masculina de poder. E se os homens dominam os discursos no Executivo, no Legislativo e no Judiciário, comandam verticalmente as tomadas de decisão que moldam as cidades – desde políticas públicas de transporte e habitação até remoções forçadas – e que invisibilizam a mulher que não só habita, mas que trabalha propiciando que a cidade funcione e as relações sociais se reproduzam.
E quando se fala de trabalho feminino, é preciso pensar não só em desigualdade salarial entre homens e mulheres, mas também na submissão das mulheres a relações trabalhistas precárias, a empregos sub-remunerados ou ao que se chama de “economia do cuidado”, trabalho doméstico não pago e que representa 11% do PIB do Brasil, sendo majoritariamente desempenhado pelas mulheres (fonte). Incide em relação às mulheres uma maior vulnerabilidade social, portanto, o que se agrava em um contexto estrutural de pobreza. Segundo dados levantados pelo TETO Brasil em quatro favelas da Bahia, são mulheres 81,1% das pessoas que abandonaram a escola em decorrência da maternidade ou paternidade – dado que exemplifica um contexto de dificuldade de ascensão social por anos de estudo.
Há, desse modo, diversos recortes entre as pessoas que vivem a cidade e sobre cada categoria desses recortes recaem vulnerabilidades sociais mais ou menos diversas, que podem aprofundar a dificuldade de (sobre)viver nas cidades. Existe, no entanto, algo comum: o espaço urbano em que se vive. Ainda que existam maneiras diferentes de viver o meio urbano, por opção ou por imposição de uma segregação socioterritorial, a cidade enquanto território no qual uma sociedade urbana desenvolve suas relações sociais – desde trabalho até lazer – é um ambiente necessariamente compartilhado.
O corpo das mulheres que ocupam esse não-lugar é seu primeiro território de batalha e resistência – quando se fala de violência doméstica, assédio e abuso sexuais – e esse mesmo corpo é o que precisa transitar no espaço urbano para atuar enquanto sujeito político que reivindica ambiente que a cerca.
Dados levantados nos últimos dois anos pelo TETO Brasil em sete comunidades do Rio de Janeiro retratam que 58,73% dos chefes do lar são mulheres. Ao mesmo tempo, depara-se com uma cidade que é hostil, por exemplo, à empregada doméstica chefe do lar que mora em uma comunidade a duas horas do seu local de trabalho. Isso porque se trata de um ambiente até então pensado majoritariamente por homens. Como consequência desse panorama, há limitação da acessibilidade de mulheres a um transporte público seguro, negligência em relação à iluminação do caminho de ida e volta ao trabalho, falta de creches e lavanderias comunitárias. A narrativa masculina de poder não prioriza, por exemplo, a necessidade provisão de uma política de habitação de interesse social que contemple mulheres que conseguiram se desprender de um ambiente de violência doméstica.
É inegável que o trabalho das mulheres construiu e constrói as cidades. No entanto, a lógica hegemônica de repartição do poder faz com que não seja das mulheres o protagonismo na distribuição dos benefícios dos processos de urbanização e da formulação das políticas públicas relacionadas ao meio urbano. Pensar no acesso à cidade como direito humano implica pensá-lo como um direito coletivo construído pelas pessoas que vivem nesse espaço compartilhado, por meio da participação de uma diversidade de sujeitos e de sujeitas em processos decisórios – o que necessariamente implica pensar a cidade a partir da favela, da periferia, da raça, do gênero, categorias com frequência invisibilizadas no planejamento do espaço urbano.
Quando o TETO trabalha em conjunto com comunidades precárias e invisíveis a produção social do habitat – do ambiente compartilhado pela comunidade -, a organização se propõe a ter como ponto de partida o que já existe nas comunidades diante da lacuna de serviços públicos: a produção de um ambiente comum pelos que nele habitam. Nesse âmbito, contribui para o fomento do potencial da comunidade que pensa e transforma a cidade a partir das suas vivências no território, das necessidades que diagnostica em seu cotidiano. Considerando que mais de 70% das lideranças comunitárias com quais atuamos em conjunto são mulheres, promove-se a participação feminina na remodelação dos espaços comuns da favela. Ao mesmo tempo, o TETO tem a intenção de incidir em políticas públicas para que haja a radicalização da gestão democrática da cidade, com a finalidade de que ocorra um real compartilhamento do poder na gestão do espaço urbano.
Neste 8 de março, que se reforce que essas estruturas são questionadas há tempos para que todas as trabalhadoras que modificam direta ou indiretamente a cidade e a fazem funcionar diariamente possam protagonizar a transformação das lógicas que regem a cidade. O comp romisso de garantir e respeitar a participação das mulheres em processos decisórios é responsabilidade da sociedade civil como todo e, acima de tudo, é inadiável. Sendo a vida urbana imediata, é urgente tratar de questões básicas como a necessidade de humana abrigo e o impacto que a desigualdade inflige às mulheres nas favelas.
Rafaela Alcântara é Coordenadora Jurídica Social do TETO Brasil. Tem 28 anos e é advogada formada pela UFPE e tem mestrado em Ciências Jurídicas na área de Direitos Humanos (UFPB), atua e pesquisa há anos em temas relacionados à moradia e à cidade.