Relatório da TETO Brasil apresenta a realidade de nove favelas hipervulnerabilizadas que são esquecidas pelo poder público e pela sociedade civil
Embora urgente, dimensionar com exatidão a violação de direitos nos territórios vulnerabilizados não tem sido uma prioridade no país. Uma contribuição relevante nesse sentido vem à tona agora com o Panorama das favelas e comunidades invisibilizadas do estado de São Paulo, lançado no dia 3 de outubro, no Insper. A pesquisa, realizada pela TETO Brasil, é resultado de uma parceria com o Centro de Estudos das Cidades – Laboratório Arq.Futuro do Insper e com a consultoria Diagonal e pode ser solicitada neste link. Os pesquisadores e voluntariado da TETO ouviram moradores de cinco comunidades da capital paulista (Verdinhas, Bemfica-Machado, Pedra Branca, Capadócia e Tekoa Pyau), três da região metropolitana de São Paulo (Fazendinha, Porto de Areia e Boca do Sapo) e uma do interior (Comunidade da Paz).
Tomas Alvim, coordenador-geral do Centro de Estudos das Cidades – Laboratório Arq.Futuro, acredita que o Panorama traz visibilidade para as comunidades invisíveis, uma das tantas faces da ineficiência do desenvolvimento urbano e das políticas públicas das cidades brasileiras. “São territórios invisíveis para os nossos olhos, no modo geral, e às vezes até para quem mora nas próprias comunidades”, afirma Alvim. “Estamos falando do substrato da nossa sociedade que, no ritmo e na dinâmica das nossas políticas públicas, infelizmente não será atendido dentro do seu ciclo de vida por um programa que possa permitir o acesso à moradia e à dignidade.”
A pesquisa corrobora a perspectiva múlti e interdisciplinar do centro de conhecimento do Insper, além de abrir caminho para soluções ancoradas em dados e evidências. “Para nós, é fundamental ter dentro da academia os atores que estão, de fato, conectados com o território e que estão atuando efetivamente na transformação dessas comunidades. A partir dessas experiências, somadas aos conhecimentos científico e analítico, poderemos produzir políticas públicas que atendam aos maiores desafios dos nossos centros urbanos. Hoje, temos um papel fundamental como sociedade de trabalhar juntos, institucionalmente, para conseguir endereçar esses desafios que tanto assombram as nossas cidades”, complementa Alvim.
Na opinião de Kátia Mello, copresidente da Diagonal, é necessário conhecer e reconhecer a dramática e dolorosa realidade das famílias que sobrevivem nas favelas e comunidades mais empobrecidas e vulnerabilizadas do Brasil, formadas por população predominantemente jovem, negra e com baixa escolaridade. “A partir do momento que as reconhecermos, poderemos transformá-las em lugares melhores, seguros e mais dignos de se viver, por meio de políticas públicas e iniciativas privadas eficientes e eficazes”, diz Kátia. “Iniciativas como a da TETO, em parceria estratégica com o Insper e a Diagonal, são essenciais para que sejam conhecidas e reconhecidas as formas de vida e as necessidades de comunidades tão invisibilizadas, entre as quais o Panorama registra e coloca luzes em nove delas com primor.”
Necessidades distintas
Camila Jordan, diretora-executiva da TETO Brasil, explica que a entidade trabalha com as comunidades mais vulnerabilizadas. As nove favelas estudadas, portanto, têm necessidades diferentes de territórios como a Rocinha e a Maré, no Rio de Janeiro, e Heliópolis e Paraisópolis, em São Paulo. “As pessoas não fazem ideia do nível de vulnerabilidade no qual essas famílias moram”, afirma Camila. “O imaginário de favela é aquele que aparece na TV, na novela, nas fotos de turismo, o morro do Rio. Mas há favelas e favelas. Os recursos e as políticas públicas não chegam a esses territórios invisíveis.”
O Panorama é uma tentativa de dar visibilidade a esse esquecimento, define Camila. A TETO tem dados consolidados de 221 comunidades brasileiras, entre favelas urbanas, loteamentos irregulares e clandestinos, assentamentos rurais, quilombos e aldeias indígenas. As informações estão disponíveis na plataforma aberta Mapa de Direitos. O Panorama abrange nove territórios com dados completos de 2019 a 2023. Foram aplicadas 2.330 enquetes, que ouviram 17.596 pessoas, de 5.373 domicílios, de forma voluntária. A mesma enquete foi aplicada em todas as comunidades, o que produziu dados que podem ser comparados.
São números que ajudam a traçar planos de ação junto com as comunidades, com prioridade para a necessidade urgente de moradia e outros projetos de infraestrutura. “Quando mora num barraco de madeira, com o piso de terra e onde chove dentro, a pessoa mal consegue pensar no amanhã, quanto mais se organizar para lutar pelos seus direitos”, diz Camila. “A moradia emergencial ou transitória não é uma casa definitiva, mas o primeiro passo para dar um mínimo de dignidade e permitir tranquilidade para seguir evoluindo e lutando pela comunidade.”
A expectativa da TETO é propagar conhecimento não somente entre atores do setor público, mas também da sociedade civil e do investimento social privado. “Nem todas as pessoas que trabalham com favelas necessariamente atuam em favelas hipervulnerabilizadas”, observa Camila. “No Brasil, o buraco é mais embaixo. Diversas fundações no país focam majoritariamente os seus investimentos em educação, que é importante, no entanto milhões de pessoas continuam morando na lama, sem banheiro em casa. As crianças dessas comunidades invisibilizadas voltam da escola e não conseguem estudar, porque moram num barraco sem água, luz e saneamento básico.”
O desafio habitacional nessas comunidades aumenta brutalmente com as consequências dos eventos climáticos extremos derivados do aquecimento global. “O financiamento que existe para adaptação climática em cidades formais é escasso, então só por intermédio do terceiro setor é possível fazer algumas obras de mitigação e adaptação climática em favelas que ainda não estão regularizadas”, aponta Camila.
Sobre a parceria com o Centro de Estudos das Cidades – Laboratório Arq.Futuro do Insper e a Diagonal, Camila conta que encontrou pessoas com a mesma indignação em relação à moradia e às favelas mais vulnerabilizadas. “Foi acontecendo naturalmente”, recorda ela. “É muito propositivo reunir pessoas da academia, do mercado, do governo, do terceiro setor e dos movimentos sociais. Há um ambiente muito rico de troca e de rede, algo que a gente também busca muito na TETO.”
O pesquisador Ygor Santos Melo, gerente social da TETO Brasil e mestrando em Habitat na Universidade de São Paulo, já esperava encontrar níveis de precariedade e indicadores de vulnerabilidade marcantes, visto que estuda esses territórios há anos. “Só não imaginava que o abismo fosse tão profundo”, afirma Melo. “A pesquisa revela o quanto essas comunidades não aparecem para a academia, os estudos em geral, a imprensa e o imaginário sobre favelas. Existem camadas de pobreza e vulnerabilidade que se empilham ainda mais em territórios mais precários. Fomos percebendo que esses territórios são desprovidos de capital social, capital econômico e apoio institucional. As políticas públicas também não fazem ideia da complexidade desses territórios.”
Subsídios
A intenção do Panorama é fornecer elementos para as políticas direcionadas às necessidades dessas populações, além de ajudar as comunidades a encontrar os seus próprios caminhos. Na média das nove favelas, por exemplo, uma em cada 160 pessoas tem ensino superior completo, enquanto a média nacional é de uma a cada cinco. Cerca de 40% dos moradores têm menos de 20 anos e 4% mais de 65 anos, ante 27% e 11%, respectivamente, no Brasil. E 78% das pessoas se declaram pretas ou pardas – a média nacional é de 55,5%. Os indicadores revelam, assim, que esses territórios são formados majoritariamente por uma população jovem, preta ou parda, com baixo acesso à educação e muitos problemas de saúde, reforça Melo.
De acordo com o pesquisador, a vulnerabilidade humana é definida na literatura por três fatores: exposição aos riscos, capacidade de resistência e dificuldade de adaptação. Em relação à exposição, dois em cada três domicílios nessas favelas estão submetidos a riscos como inundações ou desmoronamentos de terra, sem qualquer infraestrutura de proteção. A resistência também é limitada, pois 43% das casas são construídas com madeira, lona ou sucata e 69% enfrentam problemas como frio ou calor excessivo, entrada de insetos e roedores ou infiltração de umidade ou água. Por fim, a adaptação: “O nível de educação é um dos principais elementos para mensurar a capacidade de se adaptar aos riscos, porque indica uma população mais apta, criativa e capaz de reivindicar os próprios direitos e acessar as instituições públicas para atrair recursos públicos ou privados para o desenvolvimento local”, pontua Melo. “Outro elemento é o acesso ao emprego formal. A carteira de trabalho proporciona um mínimo de estabilidade, que muitas vezes se converte numa casa melhor. Mas 63% da população nessas comunidades vive de trabalho informal ou autônomo, sem carteira assinada, o que sugere fragilidade no vínculo empregatício e na capacidade de adaptação.”
Para cada um dos territórios, o relatório buscou contar uma história única. “No território indígena, por exemplo, é um recorte da própria luta de demarcação de terras indígenas e dos efeitos que essa população sofre, que são bastante ímpares”, diz Melo. “Em todas as comunidades, atuou uma equipe fixa da TETO, por algum período, durante esses cinco anos. No meu caso, ando por todos os territórios e conheço os detalhes, o que foi uma ferramenta importante de pesquisa. Isso nos permite dar precisão e encontrar caminhos de atuação. O dado é um elemento adicional a uma metodologia mais ampla de estar com essas pessoas e criar vínculos.”
Mesmo que o Panorama desenhe um perfil dos territórios hipervulnerabilizados do estado de São Paulo, Melo ressalta que a metodologia pode ser aplicada em outras regiões. “A pesquisa está baseada numa metodologia de diagnóstico que vai mapear os territórios na malha urbana, visitá-los e ouvi-los a partir da enquete aplicada”, comenta ele. “A metodologia permite aprimoramentos para responder a características locais, apoiando um censo das populações indígena, quilombola, ribeirinha, das favelas e comunidades urbanas e dos assentamentos rurais, entre outros. Para conhecer o Brasil de verdade. Porque o Brasil de verdade é este.”
Sobre o Insper
O Insper é uma instituição independente e sem fins lucrativos, que busca ser referência em educação e geração de conhecimento por meio do ensino de excelência e pesquisa nas áreas de Administração, Economia, Direito, Engenharia, Políticas Públicas, Tecnologia e Comunicação. No portfólio, cursos para várias etapas de uma trajetória profissional: graduação (Administração, Direito, Economia, Engenharia e Ciência da Computação), pós-graduação lato e stricto sensu (Certificates, MBAs, programas da área de Direito, Mestrados Profissionais) e Educação Executiva (programas de curta e média duração, e customizados de acordo com as necessidades das empresas). No âmbito da produção de conhecimento, o Insper atua por meio de cátedras e centros de pesquisa que reúnem pesquisadores em estudos e projetos dirigidos a políticas públicas, agronegócio, educação, inovação, finanças e gestão. A escola tem as certificações de qualidade da Association to Advance Collegiate Schools of Business (AACSB), Association of MBAs (AMBA) e EQUIS (EFMD Quality Improvement System).
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Sobre o Centro de Estudos das Cidades – Laboratório Arq.Futuro do Insper
O Arq.Futuro nasceu há dezesseis anos, dentro da BEĨ Editora, com a proposta de pensar e debater questões relacionadas às cidades brasileiras no horizonte dos próximos anos e décadas – e, claro, publicar material sobre o assunto –, convidando especialistas nacionais e internacionais para apresentar as inovações urbanísticas, o desenho arquitetônico e as estruturas de governança que produzem transformações efetivas na melhoria da qualidade de vida nas urbes. Em 2019, uma parceria entre o Arq.Futuro e o Insper deu origem ao Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper (desde maio de 2024, Centro de Estudos das Cidades – Laboratório Arq.Futuro do Insper), que trabalha com uma abordagem interdisciplinar e transversal para pesquisa, ensino e inovação no âmbito dos municípios. O então chamado Núcleo de Urbanismo Social, um dos primeiros a serem criados no Laboratório, estabeleceu em 2020 uma parceria com o Itaú Cultural para realização de uma pós-graduação em Urbanismo Social, pioneira e inclusiva, capaz de produzir um espaço acadêmico e ferramental de concertação entre os diversos atores que constroem as cidades, nas suas múltiplas perspectivas e experiências – poder público, iniciativa privada, sociedade civil e organizações comunitárias –, seja no corpo docente, seja no discente. Essa proposição teórica está amparada na metodologia pedagógica e na missão do Insper de produzir impacto real na sociedade.
Na trajetória das reflexões e iniciativas do Núcleo de Urbanismo Social, o tema segurança pública cidadã ganhou relevância. Entende-se, hoje, que existe uma intersecção indispensável entre Urbanismo Social e segurança pública cidadã stricto sensu e que é fundamental a integração dessas políticas nas estratégias e intervenções territoriais. Foi tal compreensão que se promoveu, em 2023, a mudança de denominação e a ampliação do foco do referido núcleo, hoje denominado Urbanismo Social e Segurança Pública.
Sobre a Diagonal
A Diagonal, empresa de consultoria pioneira em gestão social, tem como princípios a atuação integrada, participativa, territorializada e focalizada, colocando as pessoas como centro das transformações dos territórios desde sua fundação, em 1990. Com o propósito de transformar vidas por meio da mudança social e do desenvolvimento sustentável dos territórios, a Diagonal apoia governos, organizações do terceiro setor, agências internacionais de fomento e empresas privadas na geração de impacto socioambiental positivo nas comunidades em que atuam. Experiências importantes, cujas práticas já trazem elementos estruturantes do conceito de Urbanismo Social, marcaram a trajetória da Diagonal, tais como: os Projetos de Tamarutaca (1992) e de Sacadura Cabral (1998), em Santo André-SP; o Programa Decidindo Curitiba – PR (1999); Programa BID – Ciudad Juárez, no México (2000-2002); o Programa Braços Abertos, em Boa Vista-RR (2001-2004); Avaliação do Programa Favela-Bairro com o BID (1996-1997); e Urbanização Integrada de Ilha de Deus, no Recife-PE (2007-2014). Além desses, vale destacar a atuação da empresa em diversos projetos de habitação de interesse social, urbanização de favelas, regularização fundiária, saneamento integrado, reassentamento involuntário, trabalho técnico social, educação ambiental e gestão de impactos socioeconômicos, entre outros. Em seus 34 anos, a Diagonal atendeu mais de 5 milhões de pessoas, em 22 países, 24 estados e mais de mil municípios brasileiros, por meio de mais de 1.300 projetos.
*Por Leandro Steiw | Insper