“Finja que eu não existo, que eu te provo a que vim”
O potencial de uma comunidade em busca de seus direitos refletido nos olhos de Bruna
Bruna faz parte da delegação que continuará aqui, na mesma cidade, no mesmo continente. Uma delagação de mais de 100 milhões de pessoas que vivem em favelas precárias na América Latina, o continente mais desigual do mundo, segundo o Banco Mundial. Depois que a câmera for desligada, as medalhas forem entregues e os voos partirem, Bruna continuará vivendo com seu marido e suas filhas na comunidade Parque das Missões, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro.
Bruna Affonso tem 27 anos, vive na comunidade há 5, e sabe o que é ser invisibilizada por um projeto de cidade de privilégios para poucos. “Não é que [eles] não veem. Só que é mais fácil fingir que não estão vendo. Acho que eles pensam assim: ‘não é possível que com tudo não acontecendo ali dentro, essas pessoas vão continuar tentando’. E a gente continua tentando”. Tentando desenvolver a comunidade em que vivem. Persistindo. Fazendo barulho para serem ouvidos em meio a esses megaeventos.
A comunidade Parque das Missões está localizada a 30 minutos do centro da cidade do Rio de Janeiro, a 1600 metros do Aeroporto Internacional do Galeão, e a milhares de quilômetros dos seus direitos mais básicos. De acordo com o TETO, das mais de 600 famílias entrevistadas, 65% moram em barracos, 96% têm instalação de luz irregular, 55% têm que buscar água fora de suas casas e a única opção de descarte do lixo é o córrego que cerca a comunidade, porque não há coleta da prefeitura.
Mas, para Bruna, o melhor da comunidade são os moradores. “Temos diversos projetos aqui dentro e pessoas com ideias maravilhosas, que com ajuda ou não, acabam conseguindo fazer alguma coisa. Os moradores se envolvem e acreditam. Abraçam isso com vontade”. Os moradores do Parque das Missões já se organizaram, por exemplo, para realizar mutirões de limpeza, instalação de lixeiras e construção de cisterna de água da chuva. Além disso, a comunidade conta com o Sarau de Poesia, um espaço de incentivo à leitura voltado às crianças, e com a Roda Poética Feminina, instâncias de emponderamento das mulheres da comunidade através da poesia.
“Tenho certeza de que a luta é essa: de ter um lugar desenvolvido. E quando eu digo desenvolvido, não é só ter asfalto, casa de alvenaria. É ter o morador desenvolvido, seres humanos melhores. A consciência é tudo. Eu tenho certeza que a gente vai chegar nesse estágio: de estar desenvolvidos tanto nos aspectos básicos de água, luz, asfalto, como em educação”, acredita Bruna.
A higienização da cidade olímpica
Enquanto os moradores da comunidade Parque das Missões resistem resilientes, essa realidade continua a ser invisibilizada. De acordo com o guia “Violações de Direitos na Cidade Olímpica”, elaborado pela Justiça Global, diversos direitos humanos foram violados durante o período de realização de megaeventos, incluindo o direito de ser na cidade-mercadoria do Rio de Janeiro. Segundo o guia, desde 2009, mais de 77 mil pessoas foram removidas de suas casas e comunidades. A maioria das comunidades removidas se encontrava em regiões de alta valorização imobiliária.
Em relação à mobilidade urbana, o projeto original da construção da Linha 4 do metrô previa a ligação do centro do Rio de Janeiro à Barra. Mas a linha inaugurada esse mês liga apenas o barro de Ipanema à Barra. Passado os Jogos, continuará sendo um desafio sair da região central da cidade em direção à zona sul. Da mesma forma, diversas linhas de ônibus da cidade foram cortadas ou tiveram suas rotas alteradas. De acordo com o guia, essas alterações estão relacionadas ao insulamento de áreas nobres da cidade, dificultando o acesso de moradores das favelas.
O aumento da violência por parte de ações policiais, a repressão aos camelôs, a perseguição dos moradores de rua e dependentes químicos, o impedimento dos jovens das favelas de se divertirem nas praias da zona sul, também são exemplos das ações de higienização social da cidade do Rio de Janeiro realizadas com a “justificativa de preparar a cidade para os Jogos Olímpicos e devolver os espaços públicos aos cidadãos”.
Qual cidade? Quais cidadãos?
“Eu ficaria muito feliz se todo esse dinheiro que foi investido em tanta coisa bonita, não fosse só por causa de um evento. Eu ficaria muito mais feliz se eles tivessem a noção de que somos nós que moramos aqui. A gente também merece pisar numa calçada bonita, bem feita, tirar foto num lugar bonito. […] E a todos que estão competindo: boa sorte, que vença o melhor. Mas morar no Rio de Janeiro hoje já é uma grande vitória. E a nossa competição é diária”, finaliza Bruna.
Uma cidade de todos e todas
As favelas são a evidência extrema das consequências da desigualdade. É necessário uma visão de desenvolvimento de maneira que se possa potencializar e garantir que toda as pessoas possam gozar das mesmas condições e ter os mesmos direitos respeitados e promovidos sem privilegiar determinados grupos.
Mas em nossas sociedades de mercado, a qualidade de vida depende, principalmente, da capacidade econômica de cada pessoa. As cidades são mercadorias, acessíveis apenas para uma pequena parcela da população, que pode pagar pelos benefícios que elas dispõem. E as favelas são o produto desse modelo de cidade.
Todas as pessoas devem ter o direito a mesma cidade e aos mesmos direitos. Só será uma cidade se for de todos e todas, onde todos e todas estejam inseridos dentro das dinâmicas e oportunidades que ela oferece e, assim, a usufruir de forma equitativa. O direito à cidade significa, dentre diversas demandas, ter direito a uma educação de qualidade, direito a uma moradia digna que inclui a segurança de posse e acesso ao solo, direito à saúde, direito ao trabalho.
Esse cenário não é exclusivo da cidade do Rio de Janeiro nem do Brasil. É uma realidade que se estende por toda América Latina e pelo mundo. E a construção de uma sociedade justa, igualitária e sem pobreza só será possível com o comprometimento e participação de todos os cidadãos/ãs e governos.