Diversos dados mostram que, no Brasil, existe racismo, sim. Precisamos, negros e brancos, combater efetivamente esse problema tão antigo quanto profundo
Atualmente no Brasil, as favelas são fragmentos do período pós escravidão. Os negros foram excluídos e expulsos da sociedade principalmente pela ausência de políticas públicas efetivas que permitissem a verdadeira inserção dessas pessoas no convívio social. A pobreza nunca foi somente questão de classe. Gênero e raça sempre a envolveram.
Conforme dados apontados por Rita Izsák, relatora especial das Organizações das Nações Unidas sobre questões de minorias, os negros brasileiros correspondem a 70,8% de todos os 16,2 milhões que vivem atualmente em situação de extrema pobreza.
Conforme dados do IBGE, em 2014, 76% dos mais pobres no Brasil são negros, número que aumentou muito se comparado com 2004, em que o número estava em torno de 73%. Miriam Leitão se referiu uma vez ao Brasil como “a pátria distraída” por não ser capaz de perceber o próprio racismo, mas que se comove com histórias que envolvem outras nações, principalmente a americana. Ela diz que “a ausência dos negros nos eventos onde está a elite, de qualquer área, não incomoda os brasileiros. E porque tantos não veem essa ausência, podem continuar dizendo com conforto que o racismo brasileiro não existe. São os que dizem que nós apenas discriminamos os pobres. E falam isso sem pejo, sem sequer se dar conta do preconceito que a frase embute”.
Os olhos se acostumaram a ver pessoas não negras ocupando lugares de poder, mas os donos desses olhos insistem em não questionar o fato de que 54% da população brasileira é negra (segundo o IBGE) e que não vivem em uma sociedade representativa, não são protagonistas de campanhas publicitárias, não ocupam cargos bem remunerados e estão cada vez mais longe dos centros urbanos.
Conforme dados coletados pela organização social TETO Brasil nas favelas de São Paulo, em 2016, 70% de seus moradores são negros, incluindo os que se autodenominam pretos e pardos.
A pobreza tem cor e o que mais ameaça os negros que vivem nessa situação de vulnerabilidade em favelas é o genocídio silenciado.
A cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil, conforme CPI do Senado sobre o Assassinato de Jovens. Fillipe dos Anjos, secretário geral da Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro, diz que diariamente ocorrem genocídios da juventude negra e favelada em razão da ausência de reconhecimento por parte do Estado, mas ao mesmo tempo vem aumentando conforme o cenário de crise e atuação da polícia em suas operações. Conforme apontado pela BBC Brasil, dos 30 mil jovens assassinados no Brasil, 77% são negros. Está na hora da população brasileira deixar de se espantar com as notícias internacionais e perceberem como sobrevivem as pessoas nas favelas das nossas cidades.
Todos os estereótipos que envolvem pobreza, criminalidade e falta de instrução são ligados à população negra. Dados do InfoPen (Sistema Integrado de Informações Penitenciárias) mostram que os negros compõem 60% da população carcerária do país. Faz-se necessário pensar no contexto social e na relação que existe entre vulnerabilidade e marginalidade, mas o estigma da criminalidade está associado à cor da pele do indivíduo. Basta perguntar a um homem negro e a um não negro se ele já foi abordado pela polícia simplesmente por estar andando na rua; se as pessoas atravessam a rua antes de cruzar a calçada com ele à noite; se já foi perseguido por um segurança de uma loja e até mesmo se já teve seu órgão sexual como temática de piadas de crimes sexuais.
São estigmas herdados desde o tempo da abolição da escravidão e também pela ausência de políticas públicas efetivas para a real inserção da população negra na sociedade. Em 2018, o Brasil completa 130 anos da abolição, mas só se desfizeram as amarras materiais; na psique da sociedade, elas ainda existem.
Ser negro no Brasil é algo extremamente particular, cada um tem suas vivências e percepções. O autoconhecimento da negritude tem implicações sem volta no intelecto de uma pessoa negra, a militância requer força e coragem de se reestruturar diariamente.
Lázaro Ramos no livro “Na Minha Pele” reflete sobre a seguinte questão: “é bom ser negro no Brasil?”. Ele expõe que não é possível generalizar em razão da perspectiva que cada um tem do que é “bom”. Mas o negro brasileiro não sabe o que é viver e ser protagonista. E sempre precisa ser forte e resistir ao que vier. “Tanto é que o que mais se diz ao falar da luta negra é da necessidade de resistir. Ter que resistir sem existir é simplesmente mais uma crueldade sem tamanho”.
Desde 2011 sou voluntária da organização TETO, mas fui contratada como gestora territorial no início de 2017 e pude envolver a minha luta no meu trabalho. É um desafio constante ser mulher negra, advogada, trabalhar com ocupações informais e encontrar pessoas como eu nas situações mais precárias e vulneráveis que existem, distante de todos os direitos e garantias fundamentais que lhe são devidos.
Porém, o que me estimula é continuar buscando o olhar e a ação da sociedade. Preto é pobre, mas é pobre porque é preto. Há um certo receio, cuidado e até medo de alguns em afirmar isso, porém encontrar as causas é necessário para iniciar mudanças. A pobreza no Brasil tem uma cor e é preta. É claro, encontramos pessoas não negras em favelas, mas a análise recai na maior dificuldade que os negros encontram em ascender e sair dessa condição.
Não sentir na pele não exime ninguém da responsabilidade de agir afirmativamente.
Os dados expressam a necessidade e urgência de incluir nos debates a questão racial. Os olhos precisam acostumar-se a ter negros empoderados ocupando cargos de poder e decisão. Frantz Fanon dizia que o negro tem duas dimensões, se comporta e se comunica de forma diferente quando está em um ambiente somente com pessoas negras ou somente com pessoas brancas. A linguagem é adaptada para ser criada uma aproximação, para poder ocupar alguns cenários e lá ser respeitado.
Mesmo Fanon tendo feito essas declarações há mais de 60 anos é curioso notar como o comportamento negro pouco mudou. Muitos ao conseguirem sair da condição da pobreza evitam olhar para trás e abandonam suas raízes.
Contudo, buscamos resgatar o orgulho negro em cada um para que consigam resgatar forças e em conjunto mudar os números aqui apresentados. É necessário que pessoas não negras compreendam a necessidade de sua ação nesse momento. A sociedade brasileira considera uma ofensa ser declarada racista, mas pior é continuar agindo como se esses dados não fossem expressivos.
Não sentir na pele não exime ninguém da responsabilidade de agir afirmativamente. Faz parte da conduta de um cidadão que vive em uma sociedade pluriétnica almejar o cumprimento da democracia, principalmente se a mesma for racial. Não é luta de alguns, mas, sim, de todos.
Beatriz Carmo é advogada e gestora territorial da organização TETO Brasil.