Conheça o trabalho de jovens voluntários na luta pela superação do déficit habitacional no Brasil
*Por Miguel Martins, voluntário da TETO no Rio de Janeiro
Segundo dados da Fundação João Pinheiro, mais de 30 milhões de brasileiros vivem em condições que violam o direito de acesso a uma moradia digna. Cinco milhões entram para a conta do déficit habitacional, ou seja, não têm onde morar ou moram em condições extremamente vulneráveis – em prédios abandonados, moradias de papelão e madeirite ou casas de cômodo. Os outros 25 milhões, que representam mais de 10% da população brasileira, não têm acesso a serviços básicos como saneamento, distribuição de água e energia ou coleta de lixo.
Os dados são alarmantes e, para alguns, podem gerar certa angústia. Por vezes, tamanha é a angústia que muitos preferem simplesmente ignorar essa realidade – para evitar o incômodo de olhar para as famílias em condições muito piores ou por achar que nunca será possível superar a crise habitacional e social no Brasil. A grande questão é que, enquanto aqueles que não sofrem com o problema continuarem a ignorá-lo, ele continuará crescendo. De acordo com dados divulgados pelo IBGE no final de 2022, o país registrou um aumento recorde no número de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza – já são mais de 62 milhões, ou seja, três em cada 10 brasileiros vivem em situação de pobreza ou extrema pobreza.
Felizmente, para todo problema sempre há alguém disposto a lutar. Há mais de 15 anos no Brasil, uma organização voluntária já reuniu mais de 82 mil jovens de todo o país para construção de moradias para famílias desabrigadas. A TETO, que teve origem no Chile e está presente em outros 18 países da América Latina, trabalha diariamente para superar o déficit habitacional brasileiro e garantir condições dignas de moradia para milhares de famílias. Camila Jordan, diretora executiva da organização, apresentou uma visão essencial sobre moradia: “A casa é o nosso primeiro lugar no mundo, e é de lá que nos jogamos para os desafios e aventuras da vida. Sem esse primeiro direito garantido, todos os outros caem por terra“.
Entre 2007 e 2022, a organização foi responsável pela construção de 4,8 mil moradias e mais 268 projetos de infraestrutura como saneamento, pavimentação, distribuição de água e instalação de postes elétricos. Ao todo, mais de 50 mil pessoas foram impactadas diretamente pelas ações da TETO, dentre as quais estão Laerte (42 anos) e Evilásio (30), dois moradores de uma comunidade no Rio de Janeiro que foram beneficiados pelo projeto.
Do lixo ao palácio
Laerte é conhecido na Cidade de Deus como “perninha”, por ter perdido uma das pernas em um acidente de moto, e conta que as condições de quem mora em uma comunidade precária são inimagináveis. “O barraco onde eu morava, fiz com umas madeiras que achei na rua e umas doações de madeira de armário das Casas Bahia. Tinha tanto buraco na parede que quando chovia caía mais água dentro do que fora, então eu tinha que me enfiar dentro de um daqueles sacos pretos de lixo pra não me molhar. Era coisa de louco, eu não tinha nem banheiro, não tinha vaso, não tinha chuveiro.” Agora, com a nova casa construída pela TETO, comemora diariamente: “Esse aqui agora é o meu palácio, minha fortaleza.”
Ele relembra que as condições em que viveu por anos são vividas por outras dezenas de famílias na comunidade, mas a solidariedade ainda assim persiste: “A gente vê que tem muita gente aí que tá pior que a gente. Eu tive a sorte de construir minha casa com a TETO e vejo que tão fazendo muitas outras aí pela comunidade, é muito bonito. A gente vê mesmo quem não tem casa ainda, quem tá nos barracos, ajudando a construir a casa de outras famílias. Porque a gente sabe como é viver no lixo, viver sem nada. Então a gente vai lá e ajuda.”
As construções da organização são feitas, obrigatoriamente, em conjunto com os moradores. Segundo Camila, a participação das famílias ao longo de todo o processo é essencial para o desenvolvimento da comunidade. Ela afirma que a proposta da ONG, para além da superação da pobreza, é a criação de um sentimento de união nas comunidades para que, no futuro, o trabalho continue por iniciativa das famílias, sem a presença da TETO.
“Infelizmente, nossos recursos são limitados. A gente só consegue atuar em um determinado número de comunidades e hoje já estamos presentes em todas as regiões do país, com exceção do Norte. A ideia é que, com o desenvolvimento das capacidades comunitárias, a gente possa direcionar os recursos para outras comunidades em uma situação de maior vulnerabilidade e, assim, vamos uma a uma até conseguir ter uma atuação que alcance o país inteiro”, afirmou a executiva.
Um novo começo
Evilásio, assim como Laerte, também morava em um barraco precário. Ele dividia o espaço de apenas um cômodo com a esposa Stéphanie (32) e seus dois filhos, Pedro Henrique (6) e Messias Gabriel (2). Natural de São Paulo, ele conta que deixou para trás um terceiro filho, mais velho, em busca de um novo começo no Rio. Ao chegar aqui, se deparou com uma realidade diferente da que estava esperando, não conseguindo pagar o aluguel nos bairros regularizados e, como muitos, recorrendo às moradias precárias das comunidades.
Há 10 anos ele conheceu sua esposa, com quem teve os dois filhos caçulas. A renda do casal não é suficiente para sustentar os pequenos – ela trabalha como manicure e ele é ajudante de obras, mas nenhum dos dois tem estabilidade nas demandas de trabalho e nem na renda. Evilásio desabafou brevemente sobre essa realidade. “A gente não consegue ter força pra correr atrás de uma coisa melhor, de um emprego fichado, porque a gente tá lutando pra sobreviver, saca? Não tem como você correr atrás de ganhar um dinheiro, de fazer um curso, quando tá tirando rato e cobra de dentro de casa, tá pregando pedaço da parede que caiu.”
Em março deste ano, Evilásio foi um dos moradores que teve sua casa construída pela TETO. Para ele, foi a realização de um sonho: “Eu fiz questão de ajudar em cada momento, pregar cada prego. A gente sabe que isso vai mudar a nossa realidade, que vai ser um novo começo. Agora tô querendo entrar na faculdade, vou fazer Biologia na Estácio!” A conquista é marcante – ele é o primeiro de sua família a entrar em uma universidade, depois de ter conseguido uma bolsa integral na Estácio. Ao longo da construção, o tema foi tão frequente que causou comoção entre os voluntários. No final de semana seguinte, levaram uma cesta de materiais de estudo como presente e incentivo para a jornada de quatro anos que se inicia para a família.
A mãezona da comunidade
O modelo de atuação da organização conta com a presença de lideranças comunitárias, figuras da própria comunidade que conquistaram uma posição de respeito e destaque junto aos demais moradores. As lideranças atuam como interlocutoras entre o voluntariado e a comunidade, definindo prioridades para os projetos de infraestrutura e apoiando na escolha das famílias beneficiadas pelas construções.
Na comunidade do Laerte e do Evilásio, existem duas lideranças: Maria Luiza, a Mãezona, e Armando, o Pernambuco. O apelido escolhido pelos moradores para Maria Luiza não poderia ser mais acertado – ela foi uma das primeiras moradoras da comunidade e, pouco a pouco, foi acolhendo cada uma das famílias que chegavam.
Luiza lembra que, com a pandemia, muitas famílias perderam sua renda e ficaram sem condições de pagar aluguel, fazendo com que mais e mais pessoas chegassem à comunidade. Por ter acompanhado de perto cada uma delas, Mãezona é essencial para o direcionamento das moradias feitas pela TETO. Ela também mora em um barraco precário, mas se colocou no fim da fila durante o planejamento de 2023. Ao longo do ano, foram construídas 20 casas, um centro comunitário e uma praça em Comandante Guaranys, na Cidade de Deus.
O centro comunitário, que já é um sonho antigo dos moradores, foi nomeado em homenagem ao menino Thiago de Souza, assassinado pela polícia aos 10 anos no mesmo local onde o centro foi construído. Com brilho nos olhos e um sorriso enorme, Luiza conta dos seus planos para o novo espaço: “tirar as crianças da rua”. De acordo com ela, serão oferecidos serviços como aulas de reforço, atendimento psicológico, aulas de francês e inglês e outras atividades infantis como torneios e gincanas. “A TETO abriu horizontes que nós não tínhamos. Voltamos a sonhar”, concluiu.
Em Guaranys, a casa de Luiza se transformou em um ponto de acolhimento. Sempre que pode, Mãezona oferece café da manhã e almoço aos moradores mais necessitados, além de compartilhar todos os alimentos que sobram no fim do dia. Para ela, a comunidade vem sempre à frente, por vezes à frente até de suas próprias necessidades. Nas datas comemorativas, como Páscoas e Natais, ela lembra que sempre compra um prato a mais, apesar de morar apenas com o neto e com o marido. “Eu fico pensando que vai aparecer alguém com fome aqui na porta. E não consigo não ajudar, não compartilhar. E eu estou certa, sempre tem um.”
Voluntariado que transforma
Por trás dessas três histórias inspiradoras, outras dezenas de milhares de histórias se escondem. São as histórias de cada voluntário e voluntária que participa do projeto, diariamente, lutando para que mais realidades sejam transformadas. Ao longo dos últimos 15 anos, a TETO já mobilizou mais de 80 mil jovens voluntários em todo o Brasil. As atividades se concentram nos finais de semana, já que grande parte do voluntariado da organização também tem suas funções de trabalho ou estudo ao longo da semana – e o perfil é o mais diverso possível, de engenheiros e programadores a publicitários e artistas.
A diversidade é proposital, como lembrou Camila, que já está há três anos como diretora executiva da organização. Ela explica que para desenvolver soluções que façam sentido para todo o país e para a realidade das comunidades, é necessário ter perfis diferentes de voluntários durante a execução dos trabalhos. “Pra gente, a diversidade é essencial. É um dos cinco valores da TETO, junto com otimismo, convicção, excelência e solidariedade. Para que a gente possa pensar em soluções que façam sentido para as favelas mais precárias do país, não basta estar próximo e escutar os moradores. A gente também precisa ter um voluntariado que reflita o Brasil de verdade, que não seja só formado por homens brancos de classe média, que não têm ideia do que acontece dentro de uma favela.”
Gabriella Rocha, que é voluntária da equipe de infraestrutura da organização, conta que a experiência do voluntariado foi completamente transformadora em todos os aspectos da sua rotina. Para ela, conviver toda semana com as famílias das comunidades mudou a forma como ela enxergava o mundo. “Tem muita coisa que é básica pra gente e passa batido, como a possibilidade de tomar um banho todos os dias, de ter internet em casa, de ter um CEP para receber encomendas por correio, é muita coisa. Isso não parece privilégio, né? É uma coisa que todo mundo devia ter. Mas não tem.”
Ela também ressalta como o espírito da organização incentiva a interação entre o voluntariado. “Muitos dos meus melhores amigos eu conheci na TETO. E é muito louco, porque parece que a gente está em todo lugar. Já encontrei gente da TETO no trabalho, no futevôlei, na faculdade, na academia, é bizarro. E aí a gente vai criando um grupinho, um tipo de irmandade, sempre nos apoiamos em tudo.” Gabriella completou que depois de superar situações difíceis durante as construções e os eventos nas comunidades, o grupo ficou muito mais unido. “Não tem como a gente não virar parceiro.”
“As famílias com quem a gente convive não têm acesso a direitos básicos que pra nós são quase irrelevantes, isso é muito injusto. Quem vê essa realidade e não luta para transformá-la de alguma forma só pode estar vivendo em uma bolha” – Gabriella Rocha
Parcerias de impacto são essenciais
Para que todo o trabalho voluntário seja possível, a organização conta também com parcerias estratégicas com empresas de diversos setores da economia. Desde 2015, por exemplo, todos os pregos usados na construção das moradias são doados pela Gerdau – pode parecer uma doação pequena, mas apenas em 2022 a ONG recebeu mais de R$150 mil em doações de produtos e serviços. Além das doações de materiais físicos, parcerias de serviços como advocacia, comunicação e transportes também são essenciais. Com o apoio da Buser, da Azul e da Gol, a organização consegue reunir anualmente mais de 200 voluntários para um encontro nacional, promovendo um momento de troca e integração entre as sedes.
Paulo Boneff, diretor do Instituto Gerdau, comentou a parceria entre a empresa e a TETO: “A Gerdau é parceira da TETO há oito anos e temos muito orgulho de contribuir para o trabalho desenvolvido pela organização. Por meio da atuação dos nossos voluntários e a doação de pregos, reforçamos o nosso compromisso em contribuir para uma melhoria na situação habitacional.” Ele complementa relembrando o papel que a participação dos funcionários nas construções serviu como uma ferramenta essencial para o desenvolvimento de soft skills na companhia e para a integração entre os diferentes times. “Agradecemos à TETO pela confiança e engajamento incansável ao longo de todos esses anos.”
Saiba como apoiar
Atualmente, a organização está presente em oito localidades espalhadas pelo país: Pernambuco, Bahia, Goiás, Distrito Federal, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná. Não há restrições de idade ou de saúde para o voluntariado, uma vez que existem funções com diferentes graus de engajamento e de esforço físico. Para participar, basta entrar em contato através das redes sociais da ONG, buscando por TETO Brasil ou @teto.br. A organização também disponibiliza um canal específico para empresas que desejem firmar novas parcerias ou inscrever seus colaboradores para uma ação de voluntariado em conjunto. Basta acessar https://br.techo.org/parcerias/e conferir as instruções
* Artigo originalmente publicado no portal Reverbera